A Cova da Moura tem talento, e Vítor Sanches mostra-o com estilo

Filho da Cova da Moura desde o nascimento, Vítor Sanches, de 41 anos, não se limita a viver no bairro. Vive o bairro, e isso nota-se em cada projecto que produz, desenvolvido da única forma que conhece: colectivamente. Da Tabacaria Tropical à marca de t-shirts Bazofo, passando pela dinamização de um pequeno sistema de empréstimos e realização de um mercado local, o próximo desafio está na abertura de um atelier de serigrafia artesanal, no âmbito da iniciativa Dentu Zona. Do bairro, para o bairro.

por Paula Cardoso

“Passa aí, passa aí, já agora! Só para conheceres aqui a mana”. A conversa, à porta da recém-inaugurada loja Dentu Zona, na Cova da Moura, arranca ao ritmo de Vítor Sanches: colaborativo.

“É o Rogério, o grafiteiro aqui da zona”, apresenta o nosso anfitrião, incansável na divulgação do trabalho dos artistas e empreendedores locais. “A mana depois vai fazer uma entrevista contigo”, atira, mediando novos diálogos para o Afrolink, em linha com o mote do seu mais recente projecto.

Dentu Zona, traduzível para Dentro da Zona, consolida a intervenção comunitária que, desde sempre, acompanha as iniciativas de Vítor.

A mais recente, para abertura de um atelier de serigrafia artesanal no bairro, vai concretizar-se através de uma campanha de crowdfunding, que em apenas dois dias, superou os 630 euros pretendidos.

Dentro da Zona

“Agora é só arregaçar as mangas e começar a trabalhar”, publicou Vítor nas redes sociais, numa mensagem de agradecimento a todos os que contribuíram para o sucesso da angariação de fundos, construída para empoderar a comunidade.

“Não é possível crescer na Cova da Moura sem consciência de colectivo”, defende, habituado a ver, ouvir e transformar o mundo à sua volta.

O exercício, de observação e de escuta para a acção, ganhou nova direcção após uma temporada de cerca de 15 anos em Inglaterra, terminada em 2010.

“Voltei e fui-me enquadrando no que já estava a ser feito no bairro, para ver se haveria algo que pudesse acrescentar, e a partir daí fazer a minha cena. Tive de me ajustar ao ritmo daqui, e, para isso, tive de ouvir muito as pessoas”.

O processo de auscultação levou, em 2015, à abertura da Tabacaria Tropical, que permitiu gerir um pequeno sistema de empréstimos.

“O Toto Caixa juntava 12 pessoas, que contribuíam mensalmente com um valor. Todos os meses, uma dessas pessoas levava a guita recolhida no grupo para casa”, explica Vítor, realçando o efeito multiplicador do ‘bolo’.

Resumidamente: para os participantes, a ‘vaquinha’ representava um segundo vencimento, e para o resto da comunidade funcionava como um fundo de emergência, criado em paralelo.

“As contribuições mensais também geravam dinheiro para uma banca, à qual todos os moradores podiam recorrer”, clarifica o ‘ex-banqueiro’.

Como por vezes o valor em caixa duplicava, graças à realização de eventos, nem sempre os empréstimos tinham de ser devolvidos.

A dinâmica de entreajuda movia-se a partir da Tabacaria Tropical, nascida justamente dessa mesma energia solidária.

“Queria animar a minha rua, queria mais estabelecimentos abertos aqui”, conta Vítor, acrescentando que a ideia foi inspirada pela vivência britânica.

“Enquanto estava em Londres, ia muito a uma culture shop. Era uma cena positiva, onde comprava os meus livros e actualizava-me com o pessoal sobre o que se estava a passar. Acho que o meu sonho era fazer uma réplica aqui na Cova da Moura”.

O espaço de encontro acabou por fechar, mas a busca de Vítor permaneceu activa.

Já depois da despedida da Tabacaria, onde realizou uma série de actividades – como o Cineclube, que chegou a juntar 50 pessoas numa única sessão –, o ‘apetite’ cultural do criador da Dentu Zona foi saciado com o lançamento da marca de t-shirts Bazofo.

A ideia, recorda, nasceu entre viagens regulares a Londres, onde vivem as duas filhas, e de onde se habituou a transportar produtos de celebração de ícones negros.

“Para mim era um prazer fazer essa ponte, porque cá o acesso era difícil. Então trazia t-shirts de figuras como Malcom-X, Martin Luther King, Bob Marley…”.

Celebrar a identidade negra

A experiência evidenciou o potencial comercial de artigos de exaltação identitária, que, no caso da Bazofo – disponível também numa loja online – estão centrados em símbolos de pertença à Cova da Moura.

“Ser Bazofo está ligado à identidade, ao orgulho de onde vens. Para mim é bué importante”.

Dono de um legado com origens em Cabo Verde, Vítor, o mais novo de uma prole de nove irmãos, faz questão de o homenagear nas suas criações.

Por exemplo, a t-shirt Somada celebra não apenas a zona cabo-verdiana que integra a Ilha de Santiago, mas também uma música de funaná dos anos 80, assinada pelo Tulipa Negra, grupo popularizado na Cova da Moura.

“Tenho por hábito dar nome às peças, para ganharem vida. A minha cena é passar a história – a minha e de onde eu vivo”, explica, versado noutro velho costume: identificar e partilhar referências de ‘manos’ e ‘manas’.

“É assim que a cena flui”, simplifica, peremptório na observação: “Não vejo ninguém como concorrente directo. Tenho o meu público, irei sempre ter, mas ele também pode gostar da tua cena. Então, não o vou condicionar, vou lhe dar informação”.

Mais do que representar a essência do projecto Dentu Zona, essa lógica cooperativa é a essência do seu criador, electricista de profissão e agregador por convicção.

“Quando decidi avançar com as t-shirts, incluí todas as pessoas no processo. Com a Tabacaria foi igual. Na verdade, faço sempre isso”, confirma o empreendedor, que no final do ano passado organizou o primeiro Mercado da Cova da Moura.

Objectivo: promover o trabalho de artesãos e outros criadores locais.

“Agora inventei o nome Dentu Zona, mas primeiro andei a perguntar, a falar com o pessoal para saber as opiniões”.

 

O projecto tem na loja o principal cartão-de-visita. Aberto às quartas e sextas-feiras, das 14h às 20h, e também aos sábados, das 12h às 20h, o espaço ocupa a antiga Tabacaria Tropical, na Rua 8 de Dezembro.

Além de t-shirts e outros artigos da Bazofo, a Dentu Zona tem livros à venda – numa parceria com o projecto editorial Falas Afrikanas -, e vários produtos de produção local, porque esta é uma casa onde cabe sempre mais um.

A prática vem de uma forte e precoce consciência de comunidade.

“A minha infância foi espectacular. Cresci no meio de todo o pessoal, naquele momento em que o bairro se estava a construir. Havia muitos portugueses do Norte, e criou-se uma comunhão bastante forte entre as pessoas”, recorda, sublinhando o poder da força colectiva.

“Chegava o sábado e o domingo – ou a noite –, e fazias o que tinhas para fazer: metias uns tijolos e tal. Mas sozinho não conseguias. A união era muito importante para fazer as casas”.

Junta Mô: A força de juntar as mãos

O sentido de família, fundamental também na resistência a cenários recorrentes de despejo – “havia sempre aquele medo de que um dia o bairro fosse abaixo” –, renova-se diariamente no movimento que percorre as ruas da Cova da Moura.

“Junta Mô é isso”, aponta Vítor, resumindo, em crioulo, o princípio solidário que, desde as primeiras memórias, forja a história do seu bairro.

Feito e educado na Cova da Moura, esta é a única morada que conhece em Portugal, país de nascimento, mas não de acolhimento.

“Fui para Londres muito cedo, com 15, quase 16 anos, porque tinha mesmo de sair daqui”, aponta, revisitando a experiência de violência policial que o empurrou para Inglaterra.

Agredido por agentes durante um passeio a Lisboa, que se deveria ter resumido a uma ida ao cinema, Vítor assinala que o confronto com o ‘não lugar’ foi a principal marca do ataque. “Era normal querer fazer certas cenas distantes da minha zona, para não estar condicionado. Mas o que aconteceu fez com que me retirasse um pouco da sociedade, fez-me sentir como não português”, lamenta.

Apesar de sublinhar que não ficou refém dessa experiência, o empreendedor reconhece a sua importância na definição do seu caminho: “O que sou hoje vem desse passado”.

No presente, o dinamizador da Bazofo & Dentu Zona empenha-se em ocupar esse ‘não lugar’.

“Fiz a Bazofo para estar em espaços onde os negros habitualmente não estão. Esse é o meu trabalho. Vou a feiras e outros sítios onde as pessoas perguntam pela Cova da Moura. Aí aproveito para desconstruir preconceitos, mostrar coisas que os meus manos fazem todos os dias”.

Dos bolos da Nair aos graffitis do Rogério, passando pelos vestidos da SS Design, as referências sucedem-se no compasso da conversa com o Afrolink.

“Todo o morador da Cova da Moura é um activista. Eu vejo-me como um activista dessa forma”.  De mãos dadas com o talento do bairro.