A dor da cor que se expressa em palco: “Antes de qualquer coisa, sou negra”

A vida de Lara Mesquita ainda não deu um filme, mas prepara-se para ganhar expressão teatral com o texto “Sempre que Acordo”. Escrito, encenado e co-interpretado pela multifacetada criadora, o espectáculo, que apresenta situações de racismo vividas na primeira pessoa, estreia a 21 de Janeiro no Centro de Artes de Lisboa. Para visibilizar no palco um quotidiano de discriminações que muitos insistem em negar. “Vão deixar de poder dizer: ‘Não sabia que estas coisas acontecem”.

Texto de Paula Cardoso

Foto de capa por Joanna Correia

Sabia-lhe bem ouvir aquelas palavras, mas a sensação de que havia nelas algo de errado nunca desapareceu. “Tu não és preta. Não. Tu és diferente”.

Do ciclo preparatório até ao final do secundário, Lara Mesquita escutou calada, embora desconcertada: “Incomodava-me e não sabia porquê”.

O silêncio quebra-se agora, aos 34 anos, no espectáculo biográfico “Sempre que acordo”, a inaugurar no dia 21 de Janeiro, no Centro de Artes de Lisboa (CAL).

Além de assinar o texto da peça, Lara assume a encenação e também a interpretação, partilhada com Cirila Bossuet.

A realidade que escancara o racismo estrutural

As duas actrizes, formadas na Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa, sobem ao palco do CAL com o papel de representar o peso do racismo estrutural, a partir da “partilha de experiências reais, inerentes à condição de ser negra” em Portugal.

“Há muita coisa para dizer, e eu não quero mais ficar calada”, solta Lara, sem esquecer a incómoda “sensação de mission accomplished (missão cumprida)” que acompanhava o ‘apagamento’ da sua negritude.

“Diziam-me ‘tu nem pareces preta’ como se fosse um elogio. E era bom ouvir, mesmo que sentisse que também era mau”.

O conflito identitário, antes inconsciente, hoje reconchecido, vem ganhando expressão teatral desde o final de 2017. “Comecei a pensar em fazer um espectáculo com a temática do racismo, mas não sabia muito bem como”, conta Lara, num primeiro momento ‘presa’ a outras vozes.

“A ideia original até era fazer uma coisa a partir do “Otelo” de Shakespeare, mas com duas actrizes negras – eu e a Cirila. Ia arranjar maneira de falar sobre a falta de representatividade, a falta de espaço para as actrizes negras em Portugal, usando esse clássico. Tinha essa referência inicial, depois tive outras ideias, e entretanto decidi que não precisava e não queria mascarar a minha experiência”. 

Lara Mesquita (cima) e Cirila Bossuet dividem o palco

Residência artística no LARGO Residências, e 1.ª Residência Aberta no LARGO: Debate sobre racismo invisível (em baixo)

Já com o escritor britânico descartado, e também com o texto “Desdemona” de Toni Morrisson engavetado, “Sempre que acordo” materializou-se neste 2020 de pandemia.

“Percebi que a minha experiência era válida o suficiente, que se eu sentia então era válido. Por isso decidi usar a minha voz e a minha experiência”.

Crowdfunding para financiar a produção

O resultado, com assistência à dramaturgia de Marco Mendonça e Isabel Costa, apresenta-se em formato de conferência-performance e, antecipa a criadora, nasceu para despertar consciências.

“Não quero apontar dedos. Não é essa a minha intenção, embora pudesse ser, porque não tenho nada contra. Mas não é isso que quero com este espectáculo. Quero apenas falar sobre coisas que as pessoas podem desconhecer. Assim: ‘Pessoal, estão a ouvir? Isto acontece, ok?”.

Os relatos biográficos sobre a vivência feminina negra num Portugal estruturalmente racista chegam “com muitos anos de atraso”, reconhece Lara, lembrando que não há tempo a perder.

“Claro que este é um projecto válido em qualquer altura, mas ainda bem que o consegui ter pronto agora, porque, julgo eu, esta é uma das melhores alturas para isto acontecer: as pessoas estão atentas, está-se a falar sobre o assunto, está-se a desmistificar um bocadinho, a levantar o véu do tabu que é o racismo português”.

A mudança, que a autora, encenadora e actriz faz questão de co-criar, constrói-se, à falta de financiamento, com recurso ao crowdfunding.

Apesar de o valor mínimo já ter sido atingido (1.500 euros), a campanha continua activa até 11 de Janeiro, viabilizando os planos traçados por Lara Mesquita.

“Esta é uma produção independente, um espectáculo que à partida não tem dinheiro, mas eu não quero que isso se note em palco. Estamos a fazer tudo com muito rigor e profissionalismo, e é importante garantir alguma elegância e sofisticação”.

Além da contratação de profissionais para assegurar o desenho de luz e a cenografia, o montante amealhado vai permitir pagar os materiais necessários para construir o cenário, os figurinos, e outras despesas com questões mais técnicas, adianta a autora.

A estas contas a criadora espera poder somar a melhor receita de bilheteira possível. “Espero que o espectáculo esteja cheio todos os dias, esgotadíssimo, para conseguir pagar às pessoas que estão a trabalhar tanto e há tanto tempo”.

Salto de humanidade e o efeito Grada Kilomba

Mais do que um saldo positivo de contabilidade – ou, pelo menos, não endividado –, “Sempre que acordo” procura um salto positivo de humanidade.

“Será um bom resultado se pelo menos uma pessoa me disser: ‘Lara, não sabia que isto acontecia, agora sei. Obrigada, vou espalhar a mensagem, explicar a outras pessoas e tentar ser melhor.”

O abre olhos para o racismo estrutural, a partir da visibilização de situações de discriminação que se repetem diariamente – e normalizam – expandiu-se, na história de Lara, a partir do encontro com Grada Kilomba.

“Li o livro [Memórias da Plantação – Episódios de Racismo Quotidiano] da Grada assim que saiu em Portugal (2019) e, para mim, foi o início de uma mudança na prática”, recua a actriz, revisitando o seu despertar.

“Falava sobre o tema com pessoas negras, mas pouco, e com as pessoas brancas tinha desistido. Esse desgaste começou a acontecer aos 12 anos e durou até agora, até voltar a querer falar sobre isso”.

Apesar de ter sido preparada pela mãe, moçambicana, para os confrontos de pele – “não és melhor do que ninguém, mas também não és pior”, recorda-se de ouvir–, e mesmo que tenha percebido precocemente que a cor negra era percepcionada como “um defeito fundamental”, as peças do puzzle racial só começaram a encaixar verdadeiramente com Grada.

“Eu sabia perfeitamente tudo o que estava a acontecer, o que senti a minha vida toda, mas passei muito tempo a fingir que não havia racismo, que estava tudo bem, a não querer olhar para a questão, a não querer falar do problema para não lhe dar força. Esse livro mudou tudo porque validou o que sentia”.

A luta diária pela existência

O auto-diagnóstico, sempre em construção, desconstrução e reconstrução, activa um vaivém de inquietações.

“Porque me sinto inferior relativamente a quaisquer pessoas brancas? Serei racista? Porque tenho mais amigos brancos que negros? O que significa eu gostar, quando criança, que os meus amigos dissessem que eu era branca? Que poder teve o meu pai sobre a minha mãe, sendo ele um homem branco e ela uma mulher negra? Porque só tive relações amorosas com homens brancos? Ser negro de pele clara é diferente de ser negro de pele escura? Como? Porque só agora sinto necessidade de defender a minha negritude?”.

Em “Sempre que acordo”, Lara Mesquita e Cirila Bossuet debatem-se com interrogações dessa natureza, “dando corpo à tentativa de resolução das mesmas”, lê-se na sinopse do espectáculo, desenvolvido “como ferramenta provocatória do pensamento”. Não apenas do público – “Vão deixar de poder dizer: ‘Não sabia que estas coisas acontecem” –, mas também das intérpretes.

“Compreendi recentemente que, antes de qualquer outra coisa, sou negra”, salienta a criadora, destapando o subtexto que se cola ao título da peça: “A cada manhã, tenho de lutar pela minha existência, impondo-a”.

A luta pela igualdade começa aí, nota Lara, apontando para um lugar de não privilégio, esmirrado de oportunidades, por mais e melhor que se faça.

“Ao crescer fui confrontada com a (quase) inexistência de mulheres negras empoderadas no meu circuito sociocultural. A minha mãe, por ser minha mãe, e a minha professora da escola primária foram as únicas referências positivas de mulher negra a que tive acesso. Inevitavelmente isso toldou a minha visão do mundo, o que acabou por condicionar o entendimento das minhas possibilidades, traindo as minhas ambições. Com este espectáculo espero poder contribuir para a mudança deste paradigma”. Até ao cair do último pano de invisibilização.

Contribua para a campanha de crowdfunding do espectáculo “Sempre que acordo” aqui:  https://ppl.pt/semprequeacordo

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https://www.instagram.com/semprequeacordo.espectaculo/

Marque na agenda

Em cena de 21 a 31 de Janeiro, de quarta-feira a domingo

Onde: Centro de Artes de Lisboa, na Rua de Santa Engrácia, 12 A

Horário: de quarta-feira a sábado às 21h

Domingo às 17h

Bilhete único: 8€