A expressão afro de um laboratório dedicado à arte de esculpir sorrisos

De Sintra, onde nasceu, para Lagoa, onde gere o seu laboratório de prótese dentária, a vida de Noémia Fernandes conheceu uma viragem de 180 graus. Com passagem pela Holanda e pela docência universitária, e o impulso de uma pausa entre turnos de pizzaria.

por Paula Cardoso

Andava ali a fazer tempo, entretida com o registo gráfico de todos os dias, quando a veia artística a denunciou. “Gostas de desenhar?”. A pergunta tinha tudo para ficar esquecida num qualquer repositório de conversas de circunstância, mas ocupa um lugar central nas memórias de Noémia Fernandes.

“Olho para trás e penso: bendita a hora em que o meu curso me caiu ao colo”.

Até àquela questão, digerida numa pausa de almoço entre turnos de pizzaria, a outrora candidata ao curso de Marketing e Publicidade nunca sequer tinha ouvido falar em técnicos de próteses dentárias.

“Acho que ainda hoje muitos pensam que são os dentistas que fazem esse trabalho, quando, na realidade, há pessoas especializadas nisso”, observa Noémia, mais de 20 anos depois da revelação profissional.

A descoberta aconteceu a partir da sugestão do namorado de uma colega, que, como aspirante a técnico de prótese dentária, sabia que o curso incluía uma prova de desenho.

“Fui-me inscrever no último dia, fiz os testes, entrei, e continuava sem a mínima ideia do que aquilo era”, assume a hoje empresária.

Profecia de sucesso

Seleccionada para uma formação de três anos, a partir não apenas do desempenho artístico, mas também de   exames de português e de inglês, testes psicotécnicos e uma avaliação psicológica, Noémia percebeu, já nas aulas, onde é que se tinha metido.

“O primeiro ano foi complicado. Cheguei mesmo a pensar: ‘Isto não é para mim, tenho é de arranjar trabalho, comprar uma casa e seguir com a vida”.

Mais do que o efeito de um qualquer desajuste curricular, a ideia de desistir do curso reflectia uma combinação de desafios pessoais. De um lado Noémia lidava com a separação dos pais, do outro enfrentava uma desgastante ginástica financeira – embora a formação fosse subsidiada com fundos europeus, as despesas exigiam rendimentos adicionais.

 

“Quando estava convencida que era tudo uma perda de tempo, o coordenador do curso percebeu que eu tinha algumas dificuldades, conversou comigo e fez-me ver muito mais além. Disse-me que isto ia ser a minha salvação, que isto é que me ia fazer vingar na vida”.

A profecia cumpre-se desde Junho de 2018 com uma realização especial: a abertura do Noémia Fernandes – Laboratório de Prótese Dentária.

Lisboa, Holanda, Algarve

Sediado na cidade algarvia de Lagoa, o negócio acalma uma velha inquietação profissional. “Saltitei muito até perceber que teria de trabalhar para mim, nos meus parâmetros, para conseguir ser feliz, para deixar de ter a sensação de que nada era suficiente”, conta a empresária, nascida em 1978 na vila de Sintra.

A tomada de consciência aconteceu já depois da mudança de Lisboa para Algarve, entremeada por uma temporada na Holanda.

Nesse caminho, Noémia destaca a passagem por aquela que hoje é conhecida por Malo Clinic. “Quando acabei o curso, o meu primeiro emprego foi no que chamamos de laboratório de produção, porque aí as pessoas trabalham como se estivessem numa fábrica, aprendem a executar as tarefas umas com as outras”, explica a especialista, sublinhando que só depois dessa experiência percebeu o potencial de diferenciação do seu trabalho.

“Tinha aprendido a usar sempre as mesmas duas ou três referências de cores, e dei-me conta de uma imensidão de outras possibilidades, que permitem entregar um trabalho personalizado, em vez de uma coisa chapa cinco”.

A aprendizagem técnica converteu-se, entretanto, na assinatura profissional da empresária – “os clientes procuram-me mais pelo serviço diferenciado” –, igualmente cunhada pelas lições holandesas.

“Tive a sorte de trabalhar num laboratório super organizado, com um protocolo claro de procedimentos, e onde havia valorização das pessoas”, destaca Noémia, de volta aos ensinamentos obtidos em Roterdão.

“Em Portugal, das vezes em que achei que merecia ser aumentada, tive de ser eu a abordar o patrão para que isso acontecesse. É verdade que nunca me negaram o pedido, mas, na Holanda, ao fim de seis meses de trabalho, eu é que estava a ser chamada pelo patrão para receber um aumento”.

Quarto-laboratório

Entusiasmada pelo ambiente vivido durante três anos, a partir dos 25 anos, Noémia procurou recriá-lo no regresso a Portugal.

“Tentei implementar tudo o que aprendi por onde ia passando, mas a mentalidade é outra, não se consegue”, lamenta, acrescentando que a frustração também alimentou o sonho da aventura empresarial.

“Compreendo que são culturas diferentes, mas acho que a valorização de quem trabalha tem de ser uma prioridade e, por mais que tratar as pessoas como pessoas tenha de estar acima de tudo, é óbvio que o factor monetário conta muito”.

O foco no valor do trabalho, aprofundado entre práticas holandesas, forçou um ajuste recente na actividade do laboratório, antes da Covid-19 partilhada com uma estagiária remunerada.

“As coisas entretanto retomaram, mas continuamos sem saber o que vem aí, continuamos a viver tempos de muita instabilidade, e não posso ter alguém comigo, sabendo que no final do mês, por minha culpa, pode não ter o que comer”, aponta Noémia, amenizando preocupações.

 

“Sei que se de hoje para amanhã deixar de ter clientes desenrasco-me em qualquer coisa para pagar as minhas contas”.

O engenho comprova-se no currículo. Filha de um padeiro e de uma empregada doméstica, ambos naturais de Cabo Verde, Noémia habitou-se a trabalhar nas férias enquanto estudava, e, já depois de concluir o curso de técnica de próteses dentárias, até montou um laboratório em casa.

“Comecei por comprar uns materiais em segunda mão e, de repente, já tinha um quarto só para isso”, recorda, recuando até 2008, altura em que vivia na até aí sua única terra portuguesa: Mem Martins.

Inicialmente com um único cliente – “um médico dentista com quem continuei a trabalhar mesmo depois de ter ido para o Algarve” –, a empreitada caseira evoluiu para um espaço partilhado na Damaia, antes de ganhar morada empresarial em Lagoa.

 

A marca africana

Entre idas e vindas, Noémia ainda arranjou energia para dar aulas na Faculdade de Medicina Dentária de Lisboa, onde a formação em próteses dentárias ganhou grau de licenciatura.

“Quando tirei o curso, ainda fazia parte da categoria dos técnico-profissionais, embora obrigasse a ter o 12.º ano e as aulas fossem na faculdade”, esclarece a empresária, que, em 2003, foi convidada a ser professora assistente.

De volta a esses tempos, Noémia recorda uma das lições que não se cansava de repetir, também na Costa de Caparica, onde leccionou na Escola Superior de Saúde Egas Moniz.  “Dizia sempre aos meus alunos: se tiverem hipótese de sair, de ir conhecer outra cultura, de trabalhar noutro país, acho que o devem fazer”.

Apesar de frisar que o percurso profissional em Portugal tem sido especialmente feliz, a técnica, especializada em próteses fixas, volta a destacar os méritos do voo holandês.

“Tive a oportunidade de aprender a língua, que ainda hoje falo com as minhas primas que vivem lá, e até aprendi crioulo”, revela, explicando que o idioma cabo-verdiano não fez parte da educação, por decisão familiar.

“Os meus pais não nos quiseram ensinar porque pensavam que era por isso que os nossos primos, que viviam na Damaia, tinham dificuldades na escola”.

A correspondência da expressão da africanidade à perda de oportunidades, presente na história com o crioulo, sobressai igualmente na trajectória empresarial.

“A abertura do Laboratório surgiu numa altura em que comecei a questionar o porquê de desfrisar o cabelo, a reflectir de que forma isso não seria, no meu caso, uma tentativa de me parecer mais com uma europeia”.

O exercício de auto-análise trouxe o fim de uma longa rotina de alisamentos e uma nova imagem de marca. “Na altura decidi mudar o logotipo da empresa, para que exprimisse essa mudança. E, apesar de ter ouvido um ou outro comentário menos bom, a maioria das reacções foi muito positiva”. Como reflexo da celebração de uma nova identidade.