A história de um “nacionalista negro”, resgatado na perda da identidade lusa

Natural de Coimbra, Nelson Rossano nunca questionou a pertença lusa, até se deparar com o impensável: a nacionalidade portuguesa foi-lhe retirada, entre desacertos administrativos. Empurrado para meses de existência apátrida, Nelson mergulhou numa busca identitária, marcada pelos ensinamentos de Malcom X, a incursão na poesia e a construção de uma nova consciência: Negra e Africana. Maior do que qualquer documento.

por Paula Cardoso

Primeiro, veio o choque. “Foi-me dito que houve um erro na atribuição do primeiro BI [Bilhete de Identidade] e, em virtude disso, não era possível proceder à emissão de um novo documento”. Depois, chegou o despertar. “Ganhei a noção do que é ser imigrante em Portugal, e dei-me conta que muitos dos negros nascidos nas ex-colónias sofreram uma lavagem cerebral”. Pelo caminho, impôs-se o activismo. “Tinha de agir, porque o que me aconteceu não foi correcto. Decidi que ia recuperar a nacionalidade, e comecei a envolver-me nos movimentos e associações de imigrantes”. Finalmente, a celebração de um ‘renascimento’. “Costumo dizer que em todas as adversidades há algo positivo. Descobri uma africanidade que completa a minha portuguesidade”.

Do choque para o despertar, do despertar para o activismo, e do activismo para o renascimento, encontram-se capítulos centrais da história de Nelson Rossano, burocraticamente desconcertada à passagem pela adolescência.

Hoje a residir em Londres, onde exerce o cargo de supervisor concierge num empreendimento de luxo, Nelson revisita esse percurso, já cimentado na sua identidade.

“Deveria ter uns 15 ou 16 anos quando tudo começou. Dirigi-me à Conservatória dos Registos Civis de Almada, onde anos antes tinha tratado do meu BI, e, quando tudo indicava que ia renovar o documento, saí de lá com a indicação de que teria de me dirigir ao meu Consulado [de Angola] para tratar da autorização de residência. Foi um choque”.

A legitimidade da Lei da Nacionalidade de 1981 deve ser questionada

Nascido em Coimbra em 1986, de mãe angolana e pai moçambicano, Nelson viu o seu direito à cidadania portuguesa esbarrar na Lei da Nacionalidade de 1981, actualmente em processo de revisão.

Nos termos dessa legislação, as crianças nascidas no país que tenham pais estrangeiros só são reconhecidas como portuguesas se pelo menos um dos progenitores tiver residência legal no território, há no mínimo cinco anos.

“Quando nasci, a minha mãe só tinha a autorização de residência há três anos, embora vivesse no país desde os 9 ou 10 anos”, conta, explicando que essa informação passou despercebida aquando da emissão do seu primeiro bilhete de identidade.

“Não é tanto a legalidade, mas sim a legitimidade da lei que deve ser questionada. Do meu ponto de vista, crianças que nascem em Portugal são portuguesas. Não devem ser punidas, não devem ser prejudicadas por força de uma lei que assenta em critérios duvidosos”.

Português documentado quase até atingir a maioridade, Nelson perdeu, com a revogação do BI, não apenas a nacionalidade lusa, mas a velha consciência de identidade.

“Em crianças, os nossos pais querem proteger-nos das verdadeiras dificuldades. Por isso nunca me tinha apercebido como era longo o processo para obter uma autorização de residência. Só com essa situação é que a minha mãe me explicou…falou também nas somas avultadas que se pagam”.

O testemunho materno ajudou a perceber histórias de ilegalidade e a encaixar algumas peças no puzzle da infância. “De tempos a tempos, a minha mãe saía de casa de madrugada. Vim a saber depois que era para marcar lugar na fila do SEF [Serviço de Estrangeiros e Fronteiras]”.

O pedido de desculpas do Estado português

O despertar para um Portugal imigrante, até aí imperceptível, accionou a veia crítica, contestatária e activista de Nelson, que concorreu e entrou para a universidade indocumentado.

“Andava com uma folha carimbada com um selo branco, que era o meu documento oficial de estudante para acesso a exames, para inscrição na faculdade etc. A verdade é que durante alguns meses fui apátrida: tinha o meu processo a correr no SEF e no Consulado de Angola, mas nada mais”.

A teia burocrática acabou por se desfazer definitivamente a partir da mãe, que adquiriu a nacionalidade portuguesa pouco antes de Nelson fazer 18 anos. Foi quanto bastou para recuperar o documento perdido, atribuído a partir do dossier materno.

Mas, o ‘final feliz’ não apagou as marcas da desnacionalização, que o luso-angolano fez questão de mostrar às entidades responsáveis, no sentido de obter um mea culpa do Estado português.

 

“Tenho uma carta com um pedido de desculpas dos Serviços de Identificação Civil”, diz, recordando que chegou a ser recebido na Provedoria de Justiça.

“Toda essa situação fez-me olhar para o universo negro, e perceber, por exemplo, que a minha mãe era o que podemos chamar de assimilada cultural. Comecei a ter noção que ela não conhecia África por dentro, os reis e rainhas, a história de base, quem foram os nossos grandes pensadores, os nossos grandes activistas”.

A descoberta do orgulho negro

A descoberta de um “orgulho negro”, aliada ao sentimento de roubo da sua herança ancestral, lançou Nelson num resgate identitário.

“Senti necessidade de ter um contacto maior com afrodescendentes… angolanos, cabo-verdianos, guineenses. Comecei a abraçar um pouco mais a cultura africana nas suas diversas ramificações”, recorda, de volta às aprendizagens intensificadas a partir dos 18 e 19 anos.

“Na altura dizia que era um nacionalista negro, e, num acto de revolta e rebeldia até fiz uma tatuagem do Malcom X”, acrescenta, destacando o poder da História Negra para o seu renascimento.

“Encontrei Léopold Senghor a falar de negritude, li Amílcar Cabral, Patrice Lumumba, Samora Machel, vi, na África do Sul, o Nelson Mandela, a Winnie Mandela e o Desmond Tutu, e, na América, Rosa Parks, Martin Luther King, Malcom X…”.

 

As referências ajudaram a lidar com “algum desconforto e alguma revolta”, igualmente enfrentados através da escrita.

“Sou um poeta multi-híbrido e neo-africano-lusomestiço (…) Sou o que alguns chamam de poeta, um continuador da poesia negra”, lê-se no cartão-de-visita publicado na blogosfera, entre páginas que parecem congeladas no tempo.

Nelas encontramos a assinatura poética de Nelson, hoje adormecida, mas no passado galardoada, nomeadamente em Setúbal, com o Prémio Revelação de Poesia 2006, no concurso literário Manuel Barbosa du Bocage.

Quase 15 anos depois, as memórias dos versos regressam coladas à imersão em ambientes de maioria africana e afrodescendente.

“Acho que o negro em Portugal, se não viver nos subúrbios, se não conhecer a realidade dos bairros sociais, dificilmente terá uma visão completa do que é a negritude, das lutas. Simplesmente não se vai identificar, e acabará por ignorar”.

A reflexão parte da própria experiência de alienação, apenas quebrada a partir da perda do bilhete de identidade português.

“É uma fase em que contacto pela primeira vez com a realidade dos subúrbios e o trabalho das associações. Comecei a ir a reuniões, em que dava a minha perspectiva de afrodescendente”, revisita Nelson, sem esquecer os sinais de despertença.

“Cheguei a estar em encontros, com responsáveis de instituições, em que me chamavam de imigrante de segunda geração. Mas não podia concordar com isso porque eu não imigrei, eu nasci cá. Sou é descendente de africanos”.

Mestre Malcom X na bagagem angolana

A consciência de negritude e africanidade saiu reforçada com a viagem a Luanda, onde os ensinamentos do mestre Malcom X ganharam aplicação prática.

“Ele falava numa das técnicas que os senhores dos escravos usavam: colocar os negros uns contra os outros. Era o dividir para reinar”, nota Nelson, acrescentando que, em Angola, encontrou essa dinâmica bem presente.

Apesar de ser um apaixonado confesso do país que lhe legou as origens maternas, e que conheceu melhor em trabalho, de 2014 a 2016, este profissional do ramo hoteleiro – que em solo angolano se estreou na área petrolífera –, identificou clivagens entre pessoas de pele mais escura e de tez mais clara.

“Deixei de ter uma visão romântica do que é África.  Hoje sei que também temos de nos olhar ao espelho”, considera, lembrando, porém, que o reconhecimento das fragilidades implica um conhecimento das realidades históricas.

 

“A assimilação cultural feita pelo português foi muito bem executada”, lamenta, entre apelos à mudança. 

“A História negra deveria ser incluída no ensino da História portuguesa. Com isso, nenhuma criança teria de viver um caso como o meu, teria de ser ostracizada por instituições oficiais, para realmente ter um clique sobre a sua identidade”.

Apesar de realçar o efeito positivo da sua experiência – no resgate da pertença africana –, Nelson não esconde as sequelas.

“A pessoa depois desconfia de tudo e de todos em termos das instituições. Então guardo todos os documentos de 1970 até hoje”, aponta, sempre preparado para lidar com notícias de extravios e desaparecimento de papéis, realidade que experienciou em Angola.

Agora em Inglaterra, onde aplica e aprofunda os estudos obtidos na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, Nelson destaca o acesso a melhores oportunidades.

“Em Londres, a minha experiência diz-me que não interessa a idade nem a raça. Se tivermos um bom CV, somos chamados. Aliás, a prática é de envio dos currículos sem fotografia”, adianta o supervisor concierge, que aspira a um cargo directivo.

Para trás fica a aventura no ramo petrolífero, que, além da temporada angolana, incluiu passagens pela Tunísia e pela Bulgária.

Seja qual for o próximo destino, é na morada portuguesa que Nelson Rossano continuará a guardar a sua história, minuciosamente documentada e, “sempre que possível, com certificação em notário”.

Mas, por mais carimbos que caibam na sua ‘caixa-forte’, há uma autenticação que não cabe em nenhum documento: a construção da consciência negra e africana. Pessoal, mas também colectiva e transmissível.