A inspiração guineense de Filipe Henriques, o realizador que veio da utopia

Transporta consigo histórias dos primeiros 18 anos de vida na Guiné-Bissau, onde nasceu em 1979, e de onde partiu em 1998 para escapar à guerra que devastava o país. Fixado em Portugal há 22 anos, encontrou no cinema o território de expressão dessas vivências, inaugurado na recta final da faculdade com a curta-metragem “Vejo-te quando lá chegares”. Já em 2013, estreou “O espinho da rosa”, filme que lhe valeu a presença em 35 festivais de cinema, e a conquista de 11 prémios, reconhecimento internacional ignorado pelos media lusos. “Talvez por não ter um actor branco, e por se continuar a dizer que o preto não vende”, aponta, sublinhando que essa foi a primeira longa-metragem em Portugal escrita, realizada, e interpretada exclusivamente por profissionais negros. Agora a trabalhar na próxima obra, Filipe Henriques é também um dos cineastas que integram o projecto “Trezes” – que adapta para televisão contos de autores portugueses –, no qual assina a realização de “O Rapaz do Tambor”. Para ver esta noite na RTP.

por Paula Cardoso

Os 41 anos de Filipe Henriques não cabem num filme. Tão-pouco em dois, nem sequer em três ou quatro. “Tive uma vida cheia, repleta de acontecimentos, de uma série de coisas que me marcaram. Essas histórias permanecem na minha cabeça, e sei que vou contá-las”.

Inspirado sobretudo nas vivências da Guiné-Bissau, onde nasceu e cresceu até aos 18 anos, o cineasta encontra nesse passado uma fonte renovável de energia criativa.

“Temos histórias que nunca mais acabam, que nunca se contaram, que nunca se ouviram”.

Desde a infância guineense entretido com os próprios enredos – “dava comigo a andar na rua, a inventar histórias na minha cabeça, e a imaginar formas de filmá-las” – Filipe encontrou, já em Portugal, a via para a sua materialização.

Cineasta precoce

Formado em Cinema, Vídeo e Comunicação Multimédia, o hoje realizador nota que deveria ter entre uns 8 a 10 anos quando partilhou com o pai essa vocação profissional. “Disse que queria fazer filmes. Ele passou-me a mão pela cabeça e disse: ‘Está bem’”.

O apoio paterno acabou por ser determinante na altura de pagar a licenciatura, encerrada já com uma produção no currículo:  a curta-metragem “Vejo-te quando lá chegares”.

Estreada em 2005, e vencedora de dois prémios internacionais, a obra acabou por lhe abrir as portas da ex-NBP, agora Plural Entertainment.

Quadro dessa produtora até 2013, Filipe saiu com uma experiência de 15 novelas e 17 telefilmes para começar a trabalhar de forma independente.

Nesse mesmo ano, estreou a primeira longa-metragem, intitulada “O Espinho da Rosa”.

O trabalho marcou presença em 35 festivais de cinema, em vários países, e conquistou 11 prémios, trajectória consolidada ao longo de três anos.

A ideia de que “preto não vende”

Apesar do reconhecimento internacional, que incluiu a participação no maior festival de cinema negro dos EUA – o Pan-African Film Festival de Los Angeles –, e no FESPACO, consagrado como o maior certame da sétima arte de África, “O espinho da rosa” permaneceu invisibilizado no mercado luso.

“Talvez por não ter um actor branco, e por se continuar a dizer que o preto não vende”, aponta o cineasta, sublinhando que essa foi a primeira longa-metragem em Portugal escrita, realizada, e interpretada exclusivamente por profissionais negros.

“Curiosamente, escrevi esse argumento em 2004. Passei um ano inteiro a preparar, e por unanimidade a turma inteira decidiu que iria ser o guião para o final do curso [de Cinema, Vídeo e Comunicação Multimédia]”, conta o realizador, explicando que os planos saíram furados por decisão de um docente.

“Não vou revelar o nome por ser uma pessoa conhecida, mas, embora fosse nosso direito escolher o guião que queríamos, esse professor disse que não, que ele é que mandava, e que não ia ser aquele filme porque ele não queria”, prossegue Filipe, acrescentando que, incompreensivelmente, a opção recaiu sobre um filme que nem sequer tinha sido escrito.

“Por alguma razão, escolheu-se uma sinopse qualquer. A turma toda ficou gelada, ninguém disse nada”.

A rejeição como combustível e a dependência cinéfila

Em vez de se postrar, o então finalista manteve-se fiel ao plano de sempre. “A rejeição é como se fosse um combustível para mim, quando as pessoas acham que eu não consigo…”. As reticências pontuam uma capacidade única de tomar as rédeas do próprio destino.

“Ouvi o professor, levantei-me, saí, e foi assim que escrevi o “Vejo-te quando lá chegares””.

No final da história, Filipe Henriques concluiu a faculdade com um filme para mostrar, exactamente conforme tinha planeado.

“Como nasci e cresci na Guiné, nunca criei a ideia de que somos inferiores, de que os outros são superiores e de que não podemos isto ou aquilo. Não cresci com a dualidade de não saber a que parte pertenço. E sempre ouvi do meu pai: ‘Tu consegues, podes e vais fazer’”.A influência paterna também foi preponderante na descoberta da sétima arte.

“O meu pai tem uma paixão enorme por cinema. Quando éramos miúdos, projectava filmes no quintal e eu ficava colado ao ecrã.  Víamos o Sandokan, o Bruce Lee, o James Bond, Terence Hill e Bud Spencer e, até hoje, vejo no mínimo um filme por dia”.

Mais do que um hábito, a rotina cinéfila é apresentada pelo luso-guineense como “uma dependência”.  “Necessito disso, é uma forma de exercitar a minha mente, não vejo o filme só por ver, analiso o trabalho do início ao fim”. 

“Medida por medida” ao virar do próximo ecrã

Agora a trabalhar na próxima longa-metragem, o cineasta espera que o percurso de aclamação cumprido por “O espinho da rosa” facilite o processo de realização.

O novo filme, intitulado “Medida por medida”, cumpre a missão de todos os guiões que assina: “Tudo o que escrevo está relacionado com a Guiné-Bissau. Defendo também que a nossa história precisa ser contada por nós. Essa é a única forma de a contarmos bem, de enaltecermos África e os africanos”.

O propósito continua, contudo, a esbarrar em múltiplas resistências.

“Em “O espinho da rosa” tenho um advogado negro de sucesso e, a determinada altura dizem-me que não há advogados negros de sucesso”, exemplifica Filipe, salientando a importância de quebrar esse tipo de visões estereotipadas.

“Mesmo que isso fosse verdade, mesmo que não tivéssemos sequer advogados negros, eu tenho de ter a liberdade de os criar”.

Empenhado em construir novas narrativas, o cineasta adianta que mesmo quando não está a trabalhar com os seus textos, procura ter um elenco com representatividade negra.

Adaptação de Fernando Namora

A preocupação também foi transporta para o projecto “Trezes”, que adapta para televisão contos de autores portugueses.

“A história deste filme não me permitiu incluir um actor negro, mas tentei”, garente o luso-guineense, que assina a realização do texto de Fernando Namora, “O Rapaz do Tambor”

“Tive controlo do filme do princípio ao fim, não houve imposição, não houve nada que não fosse meu. Desde a adaptação à realização e à edição, tudo o que está relacionado com o filme, em termos técnicos, artísticos e de concepção visual, é meu. Mas, claro, tive produtores por trás que deram o seu parecer, tive apoio da minha equipa que foi excepcional”.

O resultado pode ser visto hoje, às 22h51, na RTP.

No centro da trama surge Jaime, um jovem introvertido que sofre com as humilhações infligidas pelos colegas. “O pai, director do colégio, distante e de poder absoluto, trata-o com indiferença. Com o apoio da mãe, Jaime encontra num quadro, de um rapaz com um tambor à frente das tropas em batalha, a inspiração e o exemplo de coragem que o irão transformar num herói improvável na luta contra a opressão”.

Libertação negra pelo cinema

O grito de libertação extraído do texto de Fernando Namora ouve-se igualmente no trabalho de Filipe Henriques.

Seja no compromisso de divulgar o talento negro em Portugal – “cá, quase não se produz com actores negros, só há um filme ou outro” –, seja na vontade de unificar uma comunidade criativa negra.

“É preciso criar uma fórmula colectiva para levarmos os nossos projectos para a frente. Acredito que temos tudo para dar certo e contar as nossas histórias”.

Enquanto o rumo comunitário não ganha forma, o cineasta aprimora a actividade da sua produtora, a Duxilin Filmes.

“O nome Duxilin vem de um termo que usamos na Guiné-Bissau, quando queremos dizer ‘não vales nada, não vales nem dois xelins’”, esclarece o cineasta, reiterando o impacto das raízes na sua história.

“Toda a minha inspiração vem da Guiné”.

Nascido em Bissau em 1979 e há 22 anos fixado em Portugal, Filipe Henriques recorda com precisão o dia da chegada a Portugal: 2 de Julho de 1998.

“Vim sem nada, como refugiado de guerra, com uma mão à frente e a outra atrás. Tinha 18 anos e a minha intenção era ir para o Brasil estudar arquitetura, porque o meu pai achava que eu tinha algum jeito para o design, achava que eu desenhava bem”.

O realizador adianta, porém, que as aspirações infantis depressa levaram a melhor. “O meu pai sempre soube que a minha intenção era fazer cinema, mas a verdade é que isso em África era e ainda é uma utopia”. Num filme por cumprir.