A “Mãe África” que derrubou um rei,
e corou a majestade feminina

“Um povo sem o conhecimento da sua história, origem e cultura é como uma árvore sem raízes”, escreveu o jamaicano Marcus Garvey, um dos ícones maiores do movimento pan-africano. Retomamos aqui o seu pensamento para enquadrar as linhas que se seguem. Com actualização semanal, darão a conhecer, de forma sucinta, figuras e episódios que fazem parte do legado negro. Neste Dia da Mulher Africana, revisitamos a memória da nigeriana Funmilayo Ransome-Kuti. A nossa “Mãe África”.
por Paula Cardoso 

A vida confrontou-a com a proibição de mobilizar protestos, por isso ela fez das suas causas piqueniques. Qual adaptação revista e melhorada da máxima “Se a vida te der limões, faz uma limonada”, a intervenção da nigeriana Funmilayo Ransome-Kuti fez História.

Mas, no ano em que se assinala o 120.º aniversário do seu nascimento, registado a 25 de Outubro de 1900, o que sabemos sobre o seu legado humanista, sufragista, activista, feminista, nacionalista?

Menos que deveríamos, garantidamente.

Mais conhecida como “Mama Fela” – distinção que assenta nos méritos do filho, o virtuoso do afrobeat, Fela Kuti –, é, porém, o epíteto “Mãe Africa” que melhor encaixa na sua trajectória.

“Ela foi muito melhor do que eu”, chegou a afirmar o lendário músico, que, no tema “Unknown Soldier” (“Soldado Desconhecido), descreve as múltiplas batalhas travadas pela “única mãe da Nigéria”: a sua.

 

A elegia surgiu já depois da morte de Funmilayo Ransome-Kuti, chorada na sequência de um ataque militar à República de Kalakuta – a comuna que o músico fundou em 1970 na sua firme oposição ao regime que então vigorava na Nigéria.

O espaço, nos arredores da cidade de Lagos, onde montou o seu estúdio de gravações e instalou toda a família, foi invadido em 1977 por milícias que, depois de arrastarem “Mama Fela” pelos cabelos, a atiraram de um segundo andar.

Ransome-Kuti acabou por morrer já em 1978, após meses de convalescença, deixando uma herança bem documentada, conforme revela a professora e investigadora americana Judith A. Byfield, no ensaio “In her Own Words” (“Pelas suas próprias palavras”).

O texto, esclarece a autora, resulta de um extenso arquivo pessoal, compilado pela própria e doado pela família à Universidade de Ibadan – uma das mais antigas da Nigéria, onde obteve, em 1968, o doutoramento honoris causa em Direito.

Soldado desconhecido de Fela Kuti

“Funmilayo Ransome-Kuti também era uma prolífica escritora e estava bem consciente da importância histórica das suas acções individuais e colectivas no contexto em que viveu. Nesse sentido, guardou um grande volume de cartas, discursos, fotografias, diários, recortes e outros materiais”, explica Judith A. Byfield.

Apesar do extenso espólio, a vida da “Mãe África” continua por conhecer.

As dimensões política, ideológica, de influenciadora são lembradas na música “Unknown Soldier” (“Soldado Desconhecido), onde se junta uma das causas fundamentais que liderou: a luta pelo sufrágio universal.

O reconhecimento do papel de Funmilayo Ransome-Kuti para a História africana foi reconhecido pela atribuição, em 1970, do Prémio Lenin para a Paz, considerado o Nobel da Paz da então União Soviética.

A distinção consagrou uma vida inteira dedicada a construir uma Nigéria melhor para as mulheres.

 

A começar nos caminhos que ela própria trilhou: além de ser recordada como a primeira mulher a conduzir um carro e uma mota no país, foi também a primeira rapariga a frequentar a Abeokuta Grammar School, escola do Ensino Secundário, experiência que complementou com os estudos em Inglaterra. A oportunidade, conseguida através de uma bolsa, levou-a a reflectir sobre as violências da opressão colonial.

No regresso à Nigéria, eliminou todos os vestígios de dominação britânica que lhe condicionavam a personalidade, substituindo o nome de registo – Frances Abigail Olufunmilayo Thomas – por uma identidade cunhada na sua ancestralidade Yoruba.

Assim nasceu Funmilayo, a partir do casamento com Israel Oludotun Ransome-Kuti, em 1925, convertida em Funmilayo Ransome-Kuti.

Mãe Leoa

Professora num primeiro momento, a “Mãe de África”, também apelidada de “Lioness of Lisabi” (Leoa do Lisabi – região nigeriana), fundou a União de Mulheres Abeokuta, que chegou a juntar cerca de 20 mil participantes.

O colectivo evolui depois para a criação da União das Mulheres Nigerianas, mais tarde rebaptizada Federação das Sociedades das Mulheres Nigerianas.

As múltiplas responsabilidades em defesa dos direitos femininos tiveram como um dos grandes marcos um protesto grevista de 1947. Em causa estava uma cobrança abusiva de impostos pelo Rei dos Egba, Oba Ademola II, que incidia sobre as vendas que as mulheres realizavam no mercado local.

A contestação, que lhe chegou a valer uma temporada na prisão, acabou contudo por fortalecer-se e  forçar a renúncia temporária do então soberano, formalizada em 1949.

A influência de Funmilayo Ransome-Kuti ressalta ainda da visibilidade internacional que alcançou, nomeadamente junto das lideranças da ex-União Soviética, Hungria e China, onde conheceu Mao Tsé-Tung.

O poder da activista, que organizava piqueniques para contornar a falta de autorização para protestar nas ruas,  levou mesmo as autoridades nigerianas a negarem-lhe a renovação do passaporte em 1956, da mesma forma que os EUA lhe rejeitaram um pedido de visto.

A capacidade de influenciar mudança acabou contudo por ser reconhecida nas negociações para a Independência da Nigéria. “Mãe África”, que aí já tinha fundado o partido Commoners People´s Party, foi a única delegada a integrar as conversações.

A libertação nacional aconteceu em 1960, mas a luta de Funmilayo Ransome-Kuti continuou até à morte.