A manta solidária que aconchega ânimos no combate à Covid-19

Fundadora do Clube das Mulheres, no concelho de Sintra, Elisabete Borges fez e aconteceu para impedir que o confinamento adoecesse a sua comunidade. Sempre com foco no trabalho colectivo, desafiou famílias inteiras a tecer uma manta solidária, iniciativa que ajudou a sacudir as amarras da quarentena.

por Paula Cardoso

Enquanto nos começávamos a ajustar aos novos termos das relações humanas, substituindo o contacto presencial pela presença digital, Elisabete Borges matutava numa alternativa para manter activos os laços na sua comunidade.

“Lembrei-me de propor a ‘Manta Solidária’”, introduz Elisabete, que, em Abril, arranjou forma de pôr famílias inteiras a costurar por dias melhores.

A iniciativa ganhou vida através da Associação Jangada D´Emoções, mais conhecida por Clube das Mulheres, e foi facilitada a partir de encontros virtuais.

A ideia assentou na criação de uma “rede informal de partilha de materiais e técnicas ligadas à costura, bordado, tricô, crochê”, fundamental para que avós, pais, filhos e netos pudessem criar, cada um no seu canto, um pedaço da manta.

 

A proposta foi apresentada pela Jangada D’ Emoções como uma via para gerar “momentos de convívio e troca de saberes”, e, ao mesmo tempo, “como alternativa criativa para a ocupação de tempos livres na fase de distanciamento social”.

O resultado pretende dar novas cores à paisagem da Tapada das Mercês, já que os retalhos produzidos pelos participantes vão ser cosidos numa única manta, a espalhar pelas ruas da localidade.

Foi aí, nesse ponto do concelho de Sintra, que Elisabete Borges fundou, em 2009, o “Clube das Mulheres”. Primeiro completamente sozinha, hoje com oito companheiras de intervenção, de várias idades e culturas, Elisabete está no terreno para garantir que todas têm uma teia de suporte.

O despertar da depresão

“Estive mesmo no fundo e levantei-me, por isso acredito que muitas mulheres também se podem levantar”, confia, recuando 15 anos na sua história.

Diagnosticada com uma depressão pós-parto em 2002, depois do nascimento da quarta e última filha, esta ajudante de cozinha de 46 anos alerta para a necessidade de quebrar tabus.

“Temos de deixar de ter medo de falar de depressão, de bipolaridade. Temos de parar de nos esconder”, insiste, com a convicção de quem encontrou suporte terapêutico numa rede solidária.

“Por causa da depressão, isolava-me muito. Sentia-me estranha, praticamente como um animal. Mas, um dia a minha irmã levou-me a um evento da Fundação Aga Khan, e fiquei logo apaixonada pelas iniciativas comunitárias”, recorda, no reencontro com as memórias de 2006.

“Pegaram em mim e capacitaram-me. Deram-me competências técnicas, acreditaram nas minhas capacidades quando eu mesma, por causa da depressão, achava que não servia para nada”.

 

Recuperar a vida em palco

A metamorfose – na qual se libertou de um passado em que nem sequer conseguia ligar um computador para um presente em que efectua reuniões online –, cumpriu-se com a descoberta de uma nova paixão: o palco.

“Uma das ferramentas no trabalho comunitário é o Teatro. Fizemos algumas peças com técnicos da linha de Sintra e encenadores”, conta, explicando que a iniciação a essa arte envolveu a família, e incluiu o seu historial clínico.

“É a minha história de vida e não tenho medo de falar nisso. Mas sei que apesar de a depressão ser uma doença, continua a haver muita discriminação na sociedade”, lamenta.

No seu caso, para além de lidar com o estigma social, Elisabete, cujas origens estão fincadas em Cabo Verde, recorda que teve de enfrentar os preconceitos de alguns parentes.

“Havia pessoas da minha família que diziam que me deveria estar a drogar, ou que tinha feitiço. Outros diziam que eu estava a fingir porque não queria trabalhar, e até aconselharam a minha irmã a pôr-me na rua”.

 

O bem-estar do voluntariado

O período mais difícil do quadro clínico depressivo, em que chegou a estar afastada das filhas, é agora visto como uma espécie de “vacina” contra o impacto psicológico da pandemia.

“Esta fase não tem sido fácil para ninguém. Mas houve alturas em que não estávamos nesta situação e foi mais difícil”, sublinha, num plural que engloba as quatro filhas e os três netos.

Hoje, ao contrário de duas das filhas que estavam a trabalhar, e que não viram os contratos renovados, Elisabete tem a garantia de que o seu lugar de ajudante de cozinha está bem guardado. Afinal, junta aos seus 14 anos de experiência profissional um vínculo de efectividade.

“A cozinha é que é o meu emprego, tudo o resto é voluntariado”, esclarece, salientando que o trabalho de campo é desenvolvido num espírito de missão.

“É uma coisa que me faz sentir muito bem”.

Além do trabalho com mulheres, “o Clube também organiza colónias de férias para crianças sem recursos, realiza eventos comunitários para angariar alimentos para algumas famílias, e almoços interculturais para a comunidade”, resume Elisabete.

O crescente e abrangente leque de actividades, executado com o apoio técnico da Fundação Aga Khan, ajudou a consolidar a presença do Clube na Tapada das Mercês.

Por isso, depois dos primeiros 10 anos a actuar de forma informal, o grupo fundado por Elisabete ganhou existência formal.

A nova condição, ainda recém-nascida, trouxe consigo o rebaptismo do projecto, agora denominado “Jangada das Emoções”.

“Como nos formalizámos, temos o apoio da Câmara de Sintra, que, através do vereador Eduardo Quinta Nova, nos tem ajudado muito, e demonstrado que acredita em nós”.

 

 

As credenciais do outrora Clube e agora Jangada medem-se também pela parceria com a associação teatral Quimera Flutuante, sua aliada num desafio aos mais novos, lançado à medida da quarentena. “Convidámos as crianças a gravarem um vídeo, com a família ou sozinhas, em que faziam uma coreografia, diziam o nome e repetiam a mensagem: ‘Vamos ficar todos bem’”.

A iniciativa alargou-se a outros países onde a Quimera desenvolve projectos, adianta Elisabete, acrescentando que está previsto que a edição dos vídeos decorra a nível internacional.

Até lá, a líder comunitária pretende manter a população da Tapada das Mercês tão unida quanto possível, e a pandemia bem longe. Sacudida com uma manta.