“A minha raça não me define, mas filia-me” – ovação a Francisca Van Dunem

No encerramento do Black History Month (Mês da História Negra), data que marca o calendário americano a cada Fevereiro, a Embaixada do Canadá em Portugal, em parceria com a Agência para a Integração Migrações e Asilo (AIMA) organizou uma gala alusiva à celebração. O momento aconteceu na passada quinta-feira, 29, na Fundação Calouste Gulbenkian, e homenageou quatro personalidades negras com um destacado contributo para a História de Portugal: a jornalista Virgínia Quaresma, o futebolista Eusébio da Silva Ferreira, a cantora e compositora Sara Tavares e Francisca Van Dunem, que entre 2015 e 2022 assumiu o cargo de Ministra da Justiça, tornando-se a primeira mulher negra a tutelar uma pasta no Governo. Presente na cerimónia, a ex-governante recebeu uma forte e merecida ovação da audiência, com que partilhou uma inspirada intervenção, que o Afrolink publica na íntegra.

Licenciada pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Francisca Van Dunem foi Ministra da Justiça entre 2015 e 2022, nomeação precedida de mais de três décadas na Magistratura do Ministério Público. Ao longo da carreira ao serviço da Justiça, assumiu, entre outros cargos de destaque, o de directora do DIAP – Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, e o de Procuradora-Geral Distrital de Lisboa. É natural de Luanda.

Francisca Van Dunem

por Francisca Van Dunem

Agradeço a Embaixada do Canada e à AIMA esta homenagem que, para mim, constitui uma enorme distinção.

E curvo-me, perante a memória dos homenageados que já não estão entre nós, endereçando um cumprimento muito sentido aos familiares.

É suposto que diga agora umas palavras, falando da minha vida, do que fui, do que sou, daquilo que a vontade e as circunstâncias fizeram de mim…

Mas, acontece que hoje eu sou Virgínia – sem nunca ter tido o privilégio de fazer uma reportagem; sou Eusébio – sem nunca ter conseguido fazer entrar uma bola numa baliza; sou Sara – sem ter vindo ao mundo com o dom de encantar multidões com a voz.

E orgulho-me de poder hoje ser todos eles, e de ser também aqueles que nunca foram aplaudidos num estádio, ou num palco aqueles que nunca pisaram a redação de um jornal, os que nunca sequer puderam aprender a escrever e a ler, mas que educaram os filhos dos outros, que cuidam dos idosos deste País, os que construíram e constroem as nossas cidades, os que varrem e limpam as nossas ruas, os que cuidam dos nossos parques e jardins, os que trabalham nos hospitais, nas escolas, nas universidades.

Mas sou também os que abriram e abrem novos horizontes à escrita; os que pelas artes plásticas mantêm vivas as raízes e a alma do lugar de que todos partimos, a nossa alma mater; os que reinventam os ritmos, a harmonia e os sons na música; os que exploram novas expressões do corpo na dança; os que filmam e encenam temas que deviam estar escritos em páginas que não existem, e levam à cena os degradados do mundo, os condenados da terra, as suas histórias, as suas memórias, os seus corpos, cuja humanidade vem sendo, há séculos diminuída, aviltada e ultrajada.

Hoje sou também os milhares que, desde o século XV foram chegando acorrentados a Lisboa, a Setúbal, a Lagos e os que, escravos, ou homens livres, foram artesãos, caiadores, pescadores, trabalharam na salga, na venda de pescado; sou ainda as mulheres que, nessa época,  foram as lavadeiras, as aguadeiras, as vendedoras de milho, de arroz e chicharros cozidos, do tremoço, da fava rica; e sou também os que buscam na investigação e na pesquisa, o resgate desse tempo e escrevem a história de mais de cinco séculos de presença negra em Portugal, da vida desses homens e mulheres e das suas organizações de solidariedade social e fruição cultural: as confrarias, as irmandades negras, os grémios.

Hoje a minha história funde-se com a de todos eles; hoje sou todos eles…e ao sê-lo, transmuto-me numa partícula menor de um sujeito coletivo, de uma grande comunidade, saída de Angola, da Guiné, vinda de Moçambique, oriunda de Cabo Verde, de S. Tomé e Príncipe, e de outros espaços de África.

Hoje é isso que quero ser e a minha história individual pouco importa…

Pouco importa, a não ser na medida em que, quebrando a invisibilidade de um grupo racial – nas instâncias de poder judicial e político, por onde passei –, possa ter contribuído para realizar o sonho coletivo de afirmação de igual dignidade de todas as raças e contribuído também para desfazer estereótipos negativos persistentes, humilhantes e castradores.

Se me tivessem sugerido há dez anos, que viesse participar num evento desta natureza, eu diria que não. Diria que, ao fazê-lo me estaria a catalogar-me, como algo diferente de um ser humano, como algo dissemelhante dos milhões de outros seres humanos que habitam a superfície da terra.

A minha raça não me define – seria seguramente a resposta que eu daria.

Mas hoje penso diferentemente. A minha raça não me define, mas filia-me. Filia-me nessa enorme diáspora.

A diáspora negra africana, que partilha uma mesma viagem. Uma viagem coletiva. Uma viagem que vimos fazendo, através dos séculos, pela reposição da nossa igual humanidade; pelo resgate de uma história que envolve saque, violência, destruição, mas também resistência, heroísmo, grandeza humana e um sem número de realizações, na Europa, na América, no mundo.

Fui durante muito tempo magistrada e exerci funções de direção relevantes na magistratura do Ministério Público. Essa condição era conhecida e partilhada pelos que me eram mais próximos. Não dizia nada ao público em geral.

Entre 2015 e 2022 exerci funções como Ministra da Justiça. E, nesse tempo, percebi, que esse facto, essa circunstância nova na minha vida, tinha tido um profundo impacto/ na comunidade negra africana e afrodescendente.

Percebi que estava a viver o presente de uma história que não era só minha – mas que pertencia a milhares de identidades gémeas que, em mim, e através de mim, experimentavam o reconhecimento da sua igual dignidade, da sua capacidade, da sua aptidão.

Vivo com a percepção lacerante e decepcionada de que, no que se refere à questão racial, o tempo paira… o tempo paira e não passa. O tempo recusa-se a avançar; resiste a fazer desabrochar as mudanças por que tantos, há tanto tempo, aguardamos. Nos 68 anos da minha vida, nada de seminalmente transformador aconteceu…

Por isso, todas as iniciativas que possam contrariar a inércia do tempo, recusando-lhe o direito a descansar, são positivas, são bem-vindas, são dignas de louvor.

Sei que os meus olhos não verão já a luz, quando chegar o tempo em que todos os dias, e todos os meses, de todos os anos, serão de celebração da história de todos: de uma única raça. A Raça Humana a que todos pertencemos.

Insisto em alimentar a esperança de que esses dias virão; que virão os dias e as horas em que todos os dias e a todas as horas se evocará o contributo que, nas diferentes latitudes, as mulheres e os homens do passado aportaram ao progresso da humanidade.

Habita-me uma confiança firme e serena de que os meus netos, os meus bisnetos e as gerações que se lhes seguirem, viverão esse tempo, e vivê-lo-ão também por mim.

Vou terminar.

Faço-o abraçando os que partilham e também os que não partilham a minha história, e agradecendo, penhoradamente à Embaixada do Canadá e à AIMA o empenhamento naquele que parece ser um dos mais longos e difíceis enfrentamentos pela mudança que a espécie humana já conheceu.

Muito obrigada!

Gulbenkian, Lisboa, 29/02/2021

Francisca Van Dunem