A mudança essencial com Joacine K.Moreira, no filme de Welket Bungué

O actor e realizador Welket Bungué desafiou a deputada Joacine Katar Moreira para o acompanhar num “filme-dança”, produzido a convite do Teatro do Bairro Alto. O trabalho, desenvolvido a partir de inquietações pandémicas, intitula-se “Mudança”, e estreia-se hoje, 28 de Setembro, com raízes na ancestralidade da Guiné-Bissau, e ramificações na actualidade da diáspora africana presente em Portugal. Para ver online até 31 de Outubro.

Texto por Paula Cardoso

Fotos de Inês Subtil*

Um trio de palavras, expresso em crioulo da Guiné-Bissau, lê-se, geração após geração, como uma herança nacional: “Cabaró, Djito Tem!”. “Significa que há sempre uma maneira de se fazer as coisas. E, mesmo quando achamos que não há, temos de dar um jeito”, explica Welket Bungué. O engenho e a resiliência, presentes no carácter do povo guineense, marcam a filmografia do actor e realizador, a partir do “testemunho literário” do pai, Paulo Tamba Bungué.

“No único livro que publicou, ele faz uma brincadeira com isso”, conta Welket, enquanto introduz a obra paterna, intitulada “Cabaró, Djito Tem!”, e publicada em 1996.

“Hoje em dia, consigo observar que é um tipo de relato prosa-poético que, de alguma maneira, nos traz vislumbres daquilo que foi a trajectória dele enquanto indivíduo nascido na Guiné-Bissau, que, tendo-se formado e estudado na Europa, e tendo combatido na guerra, consegue observar, de fora, o país pós-independente. Consegue também perceber quais são as mazelas e as decepções, tendo em conta aquilo que eram os fundamentos cabralistas”.

As leituras e releituras do legado de Paulo Bungué, vertidas na assinatura criativa do filho Welket, assumem um papel central em “Mudança”, a sua mais recente produção cinematográfica, titulada à letra de um dos poemas paternos.

Um filme-dança com palco de Teatro

Apresentada como um “filme-dança”, a curta-metragem estreia-se hoje, 28 de Setembro, no YouTube e redes sociais do Teatro do Bairro Alto (TBA), de onde partiu o convite para esta realização.

Online até 31 de Outubro, e de acesso livre, a película integra o projecto “Essenciais” do TBA, nascido entre os desafios da pandemia, e extensivo a outras três duplas criativas.

“O que têm para dizer uma à outra”, questiona-se, “duas pessoas socialmente distanciadas”, que se encontram “num lugar qualquer, real ou virtual, e chamam-lhe um palco”, sendo uma delas “profissional da cultura”, enquanto a outra “trabalhadora essencial?”.  

Como será que essas duas pessoas se movem? “O que há de essencial naquilo que fazem? Ou: qual é a essência daquilo que fazem? O que têm em comum, o que as separa? Como vivem a pandemia, o confinamento, o desconfinamento? O que mudou, o que tem de mudar? O que lhes falta de essencial?”.

As interrogações, levantadas pelo TBA, encontraram Welket em Berlim, onde, no início do ano, voltou a ganhar destaque internacional, com a interpretação, como protagonista, no filme “Berlin Alexanderplatz”.

“Sabia de antemão que estaria em Portugal em Setembro, portanto, mesmo que eu estivesse a pré-produzir as coisas fora, depois poderia vir para filmar com os actores e as actrizes e entregar o projecto”. Assim foi.

Espírito ancestral

Ainda na Alemanha, Welket iniciou uma série de ligações, artísticas e académicas, a personalidades da Guiné-Bissau.

“Trazemos uma pintura exclusivamente produzida para este filme assinada pelo Nú Barreto, pintura essa que, seguindo a minha direcção, deve trazer uma criatura assexuada, quase que pré-humana, uma forma inacabada e que, no limite, seja uma versão subjectivada desta figura que é o Cabaró”.

A referência guineense que dá título à obra do pai de Welket, manifesta-se não apenas na sabedoria popular que desproblematiza os dias, mas também numa espiritualidade ancestral.

“Cabaró é uma espécie de feiticeiro, um xamã que provém da cultura bijagó”, explica o realizador, sublinhando a importância dessa figura “que permanece ainda hoje no imaginário” colectivo.

“Quando remetemos para a herança ancestral daquilo que é a Guiné-Bissau desde o período pré-colonial, temos o Cabaró, que, em alguns rituais, continua a ser invocado para aconselhar”.

A tradição guineense, representada na pintura inédita de Nú Barreto, ganha também expressão musical em “Mudança”.

“Trazemos sonoridades contemporâneas, que estão dentro daquilo que é o repertório de pesquisa musical do artista Mû Mbana, e que, justamente, fala sobre o povo bijagó”, assinala Welket.

Além da presença dos dois artistas, fundamental para criar a imagética e composição sonora da produção, o realizador consultou estudiosos da realidade guineense – como o sociólogo Miguel de Barros e a professora universitária Zaida Pereira –, essenciais para enquadrar as páginas de “Cabaró, Djito Tem!”.

De Marselha para o protagonismo de Joacine

O processo, iniciado na Alemanha, ganhou impulso em França, país que entremeou o regresso a Portugal, e trouxe dimensão festiva ao desconfinamento.

“Em Julho, viajei para Marselha, onde estava a decorrer a festa nos terraços. Apanhei a cidade num rebuliço, a sair do estado de confinamento, que viveu durante muito tempo. Eu próprio, estava a voltar a ver um ajuntamento de pessoas, algo que não acontecia desde Março”.

A experiência de celebração da vida, num ambiente “tão multiétnico-cosmopolita”, deu a Welket a inspiração que faltava para encontrar a protagonista de “Mudança”.

“Enquanto estou em Marselha, no meio de tanta gente, penso: ‘Eu não sou daqui, mas há uma pessoa que articula um pensamento e uma missão política que visa de alguma maneira trazer este tipo de paisagem humana ao lugar onde eu pertenço, que no caso é Lisboa, Portugal. E quem é essa pessoa? É Joacine Katar Moreira. Foi aí que encontrei a protagonista para o meu filme”. 

Os trabalhadores essenciais na Assembleia da República

Apanhada de surpresa, primeiro a deputada estranhou: “Eu, trabalhadora essencial?”.

O questionamento nasce de um estatuto que a própria Joacine está empenhada em diferenciar. “O Welket não faz a menor ideia que estou a desenvolver uma iniciativa legislativa relacionada com os trabalhadores essenciais, e que neste exacto momento está a ser avaliada por advogados e juristas”, revela a parlamentar.

A proposta, avança a deputada, pretende “dar um estatuto oficial aos homens e mulheres que, num ambiente de pandemia, num ambiente de emergência sanitária, foram considerados trabalhadores e trabalhadoras essenciais”.

Joacine, que, antes de ser eleita para a Assembleia da República, presidiu ao Instituto da Mulher Negra em Portugal – INMUNE,  lembra que entre os trabalhadores essenciais vêem-se “mulheres negras com ordenados miseráveis”, a quem se exige um esforço de subsistência enorme.

A deputada sublinha que, embora seja importante valorizar o papel que os médicos, enfermeiros e todos os profissionais de Saúde desempenharam durante a pandemia, é igualmente vital reconhecer o contributo de motoristas, empregados de limpeza e outros trabalhadores essenciais.

“Estão em áreas de uma invisibilização absoluta, mas também de desvalorização, de falta de reconhecimento em termos salariais, e em termos sociais”, lamenta Joacine, acrescentando que, antes do convite de Welket, nunca tinha pensado em si como trabalhadora essencial.

A mudança legislativa que se revela essencial 

Agora, a deputada consegue ver nessa abordagem uma dimensão das transformações que o realizador quer instigar.

“Na óptica do Welket, a mudança essencial não é uma mudança instrumental, nem sequer uma mudança óbvia. É uma mudança estrutural e, nesse sentido, uma deputada é efectivamente uma trabalhadora essencial, enquanto alguém que tem a hipótese de implementar mudanças estruturais através da legislação”.

A também historiadora nota ainda que a Assembleia da República foi uma das instituições que nunca parou. “Continuamos a avaliar necessidades, continuamos a apresentar e a aprovar iniciativas legislativas. Aliás, foi na Assembleia que aprovámos os vários estados de emergência, o estado de calamidade. Então, nós, efectivamente, também somos elementos dos trabalhadores essenciais”.

A par da visão de essencialismo proposta pelo cineasta, Joacine destaca outro aspecto transformador no seu trabalho. “A identificação de um homem negro com uma mulher negra é igualmente uma mudança, que encaro como uma iniciativa de fortalecimento. Porque o Welket não escolhe uma mulher negra que esteja numa situação confortável, mas uma das pessoas negras que neste exacto momento é alvo de muito discurso de ódio online, é alvo de muitas ameaças, é alvo de muita desinformação, é alvo de muita violência”.

Um risco chamado Joacine 

Mais do que reconhecer esse desconforto, o realizador confronta-o.  “Avisei-o imediatamente que era um bocado arriscado incluir-me, mas ele disse que não, que a ideia era mesmo essa. Então, na óptica do Welket, esta mulher negra pode ser uma entrada para a mudança necessária, que é uma mudança estrutural na sociedade portuguesa”.

A deputada acrescenta, referindo-se a si própria, que, mesmo “não sendo uma pessoa consensual, é alguém que acaba por dar origem a muita reflexão nacional em relação à igualdade, em relação às desigualdades, em relação ao anti-racismo, em relação aos direitos sociais, em relação ao feminismo…”.

Sobre este último ponto, a parlamentar destaca o facto de ser “uma mulher negra que também origina muitas inquietações relativamente àquilo que é efectivamente a identidade nacional:  quem é nacional e quem não é nacional”.

Todas essas reflexões que acompanham a personalidade política da deputada encontram-se na criação de Welket, filmada em três dias, entre 4 e 6 de Setembro.

A actualidade da diáspora africana na voz de Joacine 

“O que tento fazer é trazer as referências, sobretudo sensoriais, do povo bijagó, e sobretudo a característica intrínseca de ser um povo matriarcal, e um dos poucos, senão o único povo, que não foi dominado pelos portugueses no território da Guiné-Bissau”.

O resultado, para ver no YouTube e redes sociais do Teatro do Bairro Alto, mostra-nos uma Joacine Katar Moreira atriz, a interpretar dramaticamente o poema “Mudança”, mas também uma Joacine Katar Moreira cidadã.

“Vamos vê-la a opinar sobre duas questões que têm a ver com a actualidade social, sobretudo que diz respeito à diáspora africana aqui em Portugal”, enquadra Welket, prosseguindo na descrição.  

“O filme tem esse caráter altamente ficcional e que está envolto na plasticidade que é trazida pela imagem, pela sonoridade e tudo mais. Mas não abre mão do aspecto que é mais precioso para mim, que é o discurso e presença da Joacine no contexto do filme. Então, o filme ficciona, mas também documenta aquilo que é o pensamento, aquilo que é o posicionamento relativamente a algumas questões que têm a ver com a nossa actualidade e que justamente vão reforçar essa ideia de mudança, tal como sugere o título do filme”. 

A par da oralidade, é na fisicalidade que se suporta esta “Mudança”. “Depois de ter visto algumas performances da Joacine enquanto deputada, seleccionei dois ou três momentos específicos”, aponta Welket, que, na produção, assume também a veia de intérprete. “Tentei reproduzir o meu entendimento do discurso político da Joacine através de movimento no palco”. Num plano dançado.

IG Inês Subtil: @ines.subtil_