“A população portuguesa parece não se identificar com o corpo negro na TV”

Na dissertação de Mestrado “Presença e percepções dos profissionais negros nos programas de informação e entretenimento na televisão portuguesa”, Helena Vicente analisa a (in) visibilidade dos jornalistas e apresentadores racializados. Em 25 anos de emissões, a investigadora observou processos de “desafricanização” da imagem, e identificou apenas 16 negros nos canais lusos, excluindo aqueles que trabalham na RTP África.

por Paula Cardoso

Um. Dois. Três. Quatro. Cinco…A conta-gotas, de contacto em referência, a soma de Helena Vicente parou em 36. Este é o número de apresentadores e jornalistas negros que, de 1992 a 2017, a investigadora encontrou nos canais portugueses de televisão.

Mais do que quantificar os profissionais racializados no pequeno ecrã, a maioria (20) na RTP África, Helena procurou qualificar essa presença, analisando os lugares ocupados por cada um.

O levantamento, realizado no âmbito do Mestrado em Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação, concluído no ano passado, reforçou uma velha percepção individual: em Portugal, a diversidade étnico-racial está sub-representada ou mesmo ausente das grelhas televisivas.

“Fui ganhando consciência disso à medida que ia crescendo”, conta a mestre, nascida em Luanda há 27 anos, e há 18 em Portugal.

Embora a pertença africana sempre tenha estado presente no núcleo mais próximo – desde logo pela própria família, alargada à prole do padrasto –, Helena nota que, à volta, começou a notar uma série de ausências.

“Fui reparando que as pessoas negras aparecem sobretudo em certos espaços, como a RTP África, e que, de alguma forma, as características africanas surgem camufladas”, nota, referindo-se a um processo de “desafricanização” da imagem, que salta à vista na trajectória do negro que chega à televisão.

Dessa observação quotidiana, a luso-angolana partiu para a análise académica, apresentada na dissertação de Mestrado “Presença e percepções dos profissionais negros nos programas de informação e entretenimento na televisão portuguesa”.

“A pergunta de pesquisa desta investigação é: será que os media portugueses reproduzem as desigualdades étnico-raciais que atravessam a sociedade?”.

O trabalho incluiu entrevistas a 14 dos 36 jornalistas e apresentadores negros identificados por Helena, mapeamento que, perante a falta de colaboração dos diferentes grupos de comunicação social, ganhou expressão sobretudo a partir das indicações recebidas a cada conversa.

 

Fotografias de Aline Macedo (superior e inferior), gentilmente cedidas por We Colloquium

A mestre e investigadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa relata que nenhuma das estações contactadas se disponibilizou a participar, num universo que inclui canais públicos, privados, em sinal aberto e por cabo.

A SIC, por exemplo, que pelo menos respondeu aos emails enviados – ao contrário de seis dos outros destinatários -, recusou fornecer dados, sob a alegação de que “não fazia distinção entre os profissionais negros e os profissionais brancos”.

A resistência encontrada, no final de 2017, levou Helena a reajustar a comunicação nos dois contactos posteriores com a estação de Carnaxide – um em Fevereiro de 2018 e o outro entre Julho e Agosto do mesmo ano –, mas ambos terminaram com o mesmo desfecho: o silêncio.

“Admito que fui um bocadinho ingénua. Se fosse hoje, não revelaria o objectivo do trabalho”, diz Helena, agora consciente dos obstáculos que se colocam à recolha de informações com recorte étnico-racial.

“Fui sincera, mas se apenas tivesse dito que estava a fazer uma pesquisa sobre programas de TV e apresentadores, sem referir a palavra negro, e talvez tivesse a oportunidade de chegar onde queria”.

Fotografia de Aline Macedo, gentilmente cedida por We Colloquium

O silêncio dos grupos de media

À falta de dados institucionais, a alternativa encontrada foi pedir “aos profissionais contactados para sinalizarem outros colegas negros”, adianta a investigadora, acrescentando que esse “foi um dos [métodos] mais eficazes” de estudo, apesar das suas imperfeições.

“Deixei de fora da investigação um dos nomes que me foi recomendado, porque não encontrei notícias, nem imagens no YouTube. E precisava de registos para saber se poderia considerar essa pessoa negra”, esclarece a mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação, grau obtido depois de uma Licenciatura em Ciências da Cultura.

Sem qualquer apoio dos media, Helena esbarrou também na resistência de alguns profissionais, na altura de fazer as entrevistas. “Alguns nem sequer responderam, apesar de terem lido o email, e houve quem recusasse participar por não se rever. Uma pessoa chegou a dizer: ‘Sou mestiça, não me encaixo dentro do que se pretende”.

 

A experiência tornou clara a importância de ser a própria pesquisadora a determinar os termos da categorização étnico-racial, o que foi feito a partir dos traços que percepciona como africanos.

“Embora não seja objectivo desta pesquisa realizar uma distinção entre os negros com uma tez mais escura e aqueles com uma tez mais clara (o que nos levaria ao debate sobre o colorismo), ou mesmo distinguindo o seu país de origem, ela não deixou de se colocar ao nível da auto-classificação dos entrevistados”, observou Helena, no terceiro capítulo da sua dissertação, dedicado à exposição da metodologia.

Profissionais negros confinados à RTP África

Além de atitudes de negação da negritude, ao longo do trabalho não faltou quem questionasse a abordagem da pesquisa – centrada nos jornalistas e apresentadores –, sugerindo que o foco se deveria desviar para as esferas de poder. Afinal, quem decide quem aparece na TV e de que forma?

Na sua dissertação de Mestrado, Helena sublinha que nem na RTP África existe esse comando negro.

Apesar de o canal ter programas apresentados por profissionais negros e oriundos dos PALOP, como é o caso do Bem-Vindos, “no plano das tomadas de decisão não é dirigido por negros”, lê-se na tese.

Mas, se excluirmos a RTP África da análise, em vez de 36 jornalistas e apresentadores, ficamos com 16. A esta sub-representação negra junta-se outro dado: nesse universo, a esmagadora maioria conseguiu espaço no entretenimento, e apenas oito no jornalismo.

“Os profissionais negros reconhecidos fora da esfera que os conecta imediatamente ao universo da RTP África são personalidades que de alguma maneira são altamente mediáticas e a sua imagem, enquanto produto, é reconhecida pelo público português em geral e não apenas pelos afrodescendentes”, nota Helena Vicente, na dissertação, rematando: “A população portuguesa parece não se identificar com a presença do corpo negro na televisão”.

A preferência por um ideal branco sobressai no já mencionado processo de “desafricanização” do sujeito negro televisível, desde logo pela opressão capilar.

“O cabelo das mulheres – encaracolado ou crespo –, quando alterado, é normalmente para se assemelhar ao típico cabelo da mulher branca, liso, dando um ‘ar mais clean, mais limpinho’”, exemplificou uma das repórteres entrevistadas no âmbito da dissertação.

A descrição encaixa na norma televisiva perfilada por Helena Vicente.

“Só estão presentes na televisão os indivíduos com maior proximidade possível a Portugal. Aqueles com menos sotaques das línguas africanas, que adquiriram ou têm os hábitos portugueses”, conclui a mestre, salientando que essa descaracterização “surge para uma melhor integração dos negros em lugares onde somente os brancos são aceites”.

A prática transmite, mesmo que subliminarmente, “uma mensagem simbólica de que [os negros] não pertencem àquele espaço, excluindo-os mais uma vez pelas suas características fenotípicas”.

O ‘eclipse’ de pertenças não-brancas no pequeno ecrã acaba por minar possíveis aspirações televisivas dos jovens afrodescendentes, ao mesmo tempo que “reforça junto do público branco um sentido de superioridade e de hegemonia no quadro da identidade portuguesa”, constata-se na pesquisa.

Neste cenário de apagamento da diversidade – em que a pele mais escura parece ser tida como um factor negativo para as audiências –, como é que os profissionais percepcionam o seu papel?

Nos testemunhos que recolheu, na sua maioria de mulheres (10), Helena Vicente encontrou apenas três relatos de racismo flagrante e subtil.

“Onze dos entrevistados mencionaram não ter sofrido” esse tipo discriminação no contexto profissional, assinala a tese.

Fotografia superior de Aline Macedo, gentilmente cedida por We Colloquium

Em defesa das quotas

Com ou sem episódios de destrato racial para contar, a esmagadora maioria dos inquiridos (12) considera que a diversidade étnico-racial da sociedade portuguesa não está espelhada na televisão.

Para combater essa invisibilidade, há quem advogue a introdução de políticas de acção afirmativa, nomeadamente quotas para as minorias étnicas.

A possibilidade não é, contudo, vista com bons olhos por sete dos profissionais entrevistados, que percepcionam uma solução desse género como algo incompatível com a defesa da meritocracia.

Esta é uma posição comum aos mais velhos, nota Helena Vicente, que entrevistou profissionais dos 24 aos 51 anos.

Certa de que “a presença de profissionais com diferentes origens étnico-raciais influenciaria positivamente a percepção da audiência residente em Portugal (…) destruindo certos preconceitos e estereótipos”, a investigadora explica, na sua dissertação, que as quotas permitem corrigir desequilíbrios no acesso às oportunidades.

E dá como exemplos o que já acontece no âmbito da promoção da igualdade de género, que introduziu quotas para as mulheres (Lei da Paridade), e do ingresso no Ensino Superior. Neste caso, lembra a luso-angolana, a Lei portuguesa prevê que se reservem vagas para certos grupos, nomeadamente desportistas de alto rendimento e estudantes da Madeira e dos Açores.

As minorias étnicas continuam excluídas não desse contingente, realidade que várias vozes do movimento negro pretendem corrigir, reivindicando a implementação de um sistema de quotas nos diferentes sectores da sociedade portuguesa. Da educação ao mercado de trabalho, sem esquecer o poder dos media para essa transformação.

Até lá, Helena Vicente recorda a fórmula usada por sociedades abertamente racistas para combater a invisibilidade mediática das minorias étnicas: o lançamento de canais de comunicação criados por si, onde vozes e rostos negros assumem o protagonismo.

Qualquer semelhança com o Afrolink não é pura coincidência.