A sua vida ainda não deu em livro? Se passar por Gisela Casimiro, talvez dê

Escritora calibrada na “beleza do quotidiano”, e criativa para múltiplas artes, Gisela Casimiro apresenta-se, antes de mais, como uma “contadora de histórias”. Autora do livro de poesia “Erosão”, a também tradutora e revisora, integra a exposição colectiva “Fazer de casa labirinto”, a inaugurar amanhã, 25, em Lisboa. Com vista para novas páginas.

por Paula Cardoso

“É moçambicana? Angolana? Cabo-verdiana?”.

Apanhada numa espécie de roleta-russa-africana, Gisela Casimiro dispara: “Não, não e não”.

Antes de seguir viagem, ainda há tempo para ouvir mais um palpite do motorista: “Portuguesa?”. Uma gargalhada encerra a conversa, acompanhada de um pensamento carregado de ironia: “Nunca mais é 10 de Junho”.

Alguns quilómetros mais à frente, é tempo de João, outro condutor, entrar em cena com o seu positivismo. “A vida é bela”, afiança, prestes a entregar a voz ao refrão do hit “That’s what friends are for”. Em som português: “É para isso que servem os amigos”.

A música continua, enquanto o carro e a conversa avançam. “Então, é lisboeta?”, quer saber João, antes de, na despedida, oferecer a Gisela uma nova identidade: “Boa noite, Ana”.

Será esse o nome da sósia desconhecida, revelada a caminho de um novo destino? Aquela que é tão parecida com Gisela que talvez tenham um parentesco?

Seja como for, a demarcação territorial volta a evidenciar-se, pela voz de um terceiro chauffer: “É natural de onde?”. “E vive aqui há muito tempo?”.

Identidade livre de compartimentação

Nascida na Guiné-Bissau em 1984, e desde o pré-escolar em Portugal, Gisela Casimiro responde desassombradamente a todas essas questões, registadas entre três viagens de Uber, mas presentes em incontáveis encontros.

“Tenho a questão identitária bastante bem resolvida. O resto do mundo é que parece que não: queremos sempre compartimentar e colocar pequenas etiquetas de identificação para nos sentirmos mais confortáveis com aquilo que é outro”, nota esta “contadora de histórias” sem fronteiras, calibrada no que diz ser a “beleza do quotidiano”.

“Está tudo à nossa frente, à nossa volta. Precisamos apenas de contemplar. Pode ser a Natureza, uma parede em branco, ou as nossas próprias mãos”.

O exercício de observação sobressai na veia artística e literária de Gisela, tal como a sua biografia, em franca actualização.

Nova exposição em Lisboa para ver até 16 de Setembro

Com um currículo criativo que se expressa na Escrita, na Fotografia e no Teatro, a autora inaugurou este ano a sua primeira exposição individual – intitulada “O que perdi em estômago, ganhei em coração –, e prepara o regresso às galerias, amanhã, 25, com a mostra colectiva “Fazer de casa labirinto”.

Patente até 16 de Setembro, o projecto, com curadoria de Ana Cristina Cachola e Sérgio Fazenda Rodrigues, cruza olhares sobre a experiência de resistência à pandemia, “e os seus impactos nas relações e na vivência do espaço, do psicológico ao urbano”.

No fundo, a descoberta de uma nova “beleza do quotidiano”, que, pelo menos na rotina de confinamento vivida por Gisela, obrigou a depurar sentidos.

“A vida não pára por estarmos fechados em casa. Ela segue no ruído das obras, na maior presença dos vizinhos, que ouvimos mesmo quando não vemos, nas reuniões que temos por videochamada, nos emails que trocamos”, ilustra a artista, insistindo na importância da contemplação.

“Não vemos todos os pássaros que ouvimos, mas eles continuam a cantar”.

Apesar de algumas desafinações de calendário, tal como os bandos não deixaram de musicar, também a escritora nunca deixou de contar histórias.

Poesia em mandarim

Como as de João Pedro, Valentina, Beatriz Lebre e Latasha Harlins, entrelaçadas, na hora da morte, no poema “Digam os seus nomes”, publicado em Junho na revista Pessoa. 

Já em Julho, foi tempo de apresentar o primeiro de três textos produzidos para a Contemporânea, sob o título “Segundo Cérebro”. 

Pelo caminho, ainda houve espaço para celebrar, ainda que à distância, o lançamento da antologia macaense “Rio das Pérolas”, que reúne poemas de 24 autores com ligações a Macau.

No caso de Gisela Casimiro, os laços nasceram com os relatos apaixonantes de uma amiga de faculdade – ainda hoje aí emigrada –, e evoluíram a partir da escrita.

Autora do livro de poesia “Erosão”, lançado em 2018, a luso-guineense participou, no ano passado, no festival literário macaense Rota das Letras.

A experiência a Oriente, que lhe abriu as páginas de uma crónica no jornal “Hoje Macau”, prepara-se para um novo voo: a obra “Erosão”, publicada pela editora brasileira Urutau, vai ganhar vida em mandarim, com a chancela da Praia Grande Edições e apoio do Instituto Camões.

Um diário chamado Facebook

 Até lá, Gisela promete continuar a documentar “Diálogos do quotidiano”, que vai partilhando numa espécie de diário aberto: o Facebook.

“Para mim é uma ferramenta de escrita, onde cabe tudo. Uso o meu perfil como se fosse mais um pedaço de papel que tenho à mão”, conta, saltitando entre posts de inspiração uberiana, relatos de conversas com amigos, leituras irónicas da actualidade e também – mas não só – a incontornável produção poética.

“Não diria que é uma epifania. Creio que a poesia é como uma voz que fala connosco. Pode até ser a nossa própria voz, que nos vem de repente, porque as palavras não pedem permissão. Elas conquistam o seu lugar”.

No Natal passado, por exemplo, a poesia irrompeu no adeus a um familiar.

“Ao segundo dia, após a notícia do falecimento, escrevi sete poemas. Fi-lo muito emocionada, chorando e tudo o mais. Mas nem sempre acontece assim. Às vezes surge só uma frase”.

Venha como vier, em poema, crónica, diálogo, o que for, a escritora não tem dúvidas de que “toda a escrita acaba por ser um processo de autoconhecimento, de compreensão do mundo”.  

Três livros por desengavetar

Grafomaníaca e activista assumida, Gisela, vai transitando os pensamentos entre anotações no papel e no digital, sempre com o mesmo propósito: “Não escrevo nada que não seja intencionado para ser livro”.

Com três obras a postos para alargar a sua bibliografia – duas de crónicas (“Estendais” e “Pessoas que”) e outra de poesia (“Giz) –, a escritora revela ainda a vontade de se aventurar por novos géneros.

“Estou a escrever um romance já há algum tempo, algo muito específico e curtíssimo, que vejo como uma mistura com o ensaio. Depois quero transitar para aí mais frequentemente, mas continuarei sempre com a poesia e com as crónicas”.

Segura do seu destino de “contadora de histórias”, precocemente fadado entre leituras infantis – “ao ler os contos dos Irmãos Grimm soube que era isso que queria fazer –, Gisela ponderou cumpri-lo através do Jornalismo.

Mas a passagem pelo curso de Ciências da Comunicação acabou por dar lugar à licenciatura em Estudos Portugueses e Ingleses, complementada por formações em Revisão e Tradução.

“Gosto mesmo muito de pessoas, de conversar com elas, de as ouvir, de contar as suas histórias. Claro que o jornalismo também é isso, mas eu procuro uma ligação mais pessoal. Acredito que tenho mais liberdade e conheço melhor as pessoas sendo escritora, do que se me tivesse tornado jornalista”.

Memorial do colectivo

No encontro com o outro, e também consigo – “sou uma pessoa que fala muito sozinha” –, Gisela constrói uma memória maior do que a própria vida.

Nela, as conversas com amigos, colegas e outras pessoas próximas se mesclam a diálogos com e entre desconhecidos.

“Há lugar para todos na minha escrita, todos aqueles com quem me vou cruzando”, sustenta, empenhada em construir um legado plural.

“Quero preservar uma memória colectiva na primeira pessoa, a memória daquilo que vivemos uns com os outros”, adianta, enquanto continua a urdir a teia de relações.

“Por mais que a minha história seja rica, densa e intensa, eu não existo aqui sozinha, todas as pessoas que conheci e vier a conhecer fazem e farão parte de mim”.

Pode ser o motorista de Uber, a senhora destravada no café, os vizinhos de cima e de baixo, a avó ‘emprestada’ numa viagem à Turquia, o universo de pertenças presente na escrita de Gisela atravessa tantas geografias, que não cabe em tentativas de estreitamento.

“Escrevo sobre experiências passadas em Portugal mas não só, porque também escrevo sobre coisas que vieram de viagens. Mas não é preciso a pessoa ter vindo a Lisboa, ter estado em Portugal, para se identificar com aquilo que eu escrevo, porque falo de um lugar de humanidade”, sublinha, descolando-se de outros rótulos.

“Apresentam-me sempre como escritora da Guiné-Bissau, por exemplo quando me convidam para festivais literários, por isso depois tenho de explicar que apesar de ter nascido lá, e de ter muito orgulho nisso, vivo deste os meus três, quatro anos em Portugal, e nunca mais voltei”.

Talvez regresse, talvez até escreva sobre a realidade guineense, mas, qualquer que seja o destino, a escritora faz questão de contá-lo na primeira pessoa. Todos os dias.

“Eu vejo beleza no quotidiano é esse o meu legado: a beleza do quotidiano, a beleza de estarmos uns com os outros”. Hoje ainda condicionados pelo distanciamento social, amanhã, se calhar, ligados nas páginas de um livro. Assinado por Gisela Casimiro.