A vida a preto e branco, com flashes
de uma máquina de guerra

Formado em Ciências da Comunicação, João Carlos Monteiro trilhou uma carreira na área das Telecomunicações, especializado no atendimento ao cliente. O percurso, firmado em Portugal, expande-se há uma década na sua Angola natal, onde a multipremiada paixão pela fotografia o confrontou com uma velha máquina de guerra.

por Paula Cardoso

Pára o trânsito. Carrega crianças de colo. Desdobra-se em mais de sete ofícios. Acompanha preces de altar. Salta para mergulhos infantis. Improvisa sustento. Prossegue sem parar.

Sempre ao ritmo da vida, na rua, e focado na presença humana, João Carlos Monteiro funde-se aos movimentos quotidianos que observa, testemunhados pelo alcance da sua câmara fotográfica.

“O que me interessa captar não é a pessoa em si, e sim o que está a fazer”, revela, habituado a demorar a atenção nos detalhes.

Desde 2008 a aprimorar a observação, para “tirar fotos um bocadinho fora da caixa”, João Carlos rompe as fronteiras do óbvio, não apenas com a força do ângulo, mas também com uma certa dose de interpretação. “Tento ficcionar um bocadinho. Gosto de juntar elementos que não têm nada a ver uns com os outros e criar uma narrativa”.

Ler e ver a foto

O toque personalizado ganha expressão literal nos títulos que vai colando às imagens, disponíveis em mais do que uma galeria online

“Por um lado, vejo que uma boa fotografia tem a capacidade de dizer tudo, de contar toda a história. Por outro lado, gosto de focar as pessoas na mensagem que tenciono passar, de fazê-las reflectir no que estão a ver”.

A opção descritiva mostra-nos, por exemplo, a “tenda dos murmúrios”, que encontrou em Angola, no Santuário da Muxima, abaixo retratado numa galeria de imagens. Já em Portugal, a montra de uma loja de lingerie sugere escolhas difíceis: “One in a million”, ou, “Uma num milhão”.

“As fotos também se lêem a partir do título”, defende João Carlos, comparando esta prática a uma “pincelada de edição”, complemento de outra imagem de marca: o preto e o branco.

“Não altero muito as imagens. O que faço é converter as fotos para preto e branco, porque acho que dessa forma as pessoas vão mais para o facto, para a realidade crua, sem nada que eventualmente as possa distrair, como as outras cores”.

Paixão de infância

Dono de um portfólio que deambula entre ruas angolanas e portuguesas, foi por Lisboa, onde viveu a maior parte da vida, que o fotógrafo descobriu a paixão pela fotografia.

“Em criança tinha a função de pôr e tirar as fotos nos álbuns de família. Acho que fui interiorizando o gosto dessa forma”.

Apesar de se definir sobretudo como um autodidacta, a Licenciatura em Ciências da Comunicação, com especialização em Jornalismo, acrescida de um Curso Básico de Fotografia com especialização em Reportagens e Desportos dão algum enquadramento profissional aos retratos.

Nascido no Huambo em 1970, morada que a família trocou por Luanda e mais tarde por Portugal, João Carlos regressou a Angola há dez anos, após três décadas por terras lusas.

A oportunidade do reencontro com as origens chegou em 2010, depois de 12 anos de especialização nos quadros de um gigante das telecomunicações.

“Saí de Portugal para coordenar um projecto de formação para atendimento ao cliente, que é onde tenho experiência”, conta, especializado em capacitar profissionais para um melhor apoio ao público.

“No fundo, passa por lhes proporcionar a possibilidade de fazerem um bom atendimento, quer seja telefónico, quer seja presencial”.

Foco humano

A atenção ao factor humano, presente no dia-a-dia profissional, expressa-se também na prática fotográfica: “Gosto, essencialmente, de fotografar pessoas”.

A preferência, que em Lisboa tinha a oportunidade de seguir a toda a hora – “a determinada altura, aproveitava a pausa de almoço para fotografar” –, encontrou um travão inesperado em Luanda.

“Estava habituado a fotografar com proximidade, por toda a parte. Mas, aqui ainda há pessoas que olham para a máquina fotográfica como uma arma, por causa dos fantasmas da guerra. Então, é como se estivesse armado”.

A barreira obrigou João Carlos a um ajuste, igualmente necessário para contornar outros obstáculos culturais e institucionais. “Encontro pessoas mais velhas que acreditam que a fotografia lhes pode roubar a alma. Ao mesmo tempo, é muito difícil fotografar na rua sem ser interpelado pela Polícia”.

 

Foto em família

Os múltiplos desafios trouxeram novos ângulos de observação e de expressão.

“Tudo isto obrigou-me a fazer fotografia com menos proximidade. Comecei a trabalhar mais os enquadramentos, a ter mais preocupação em contar a história de onde a pessoa está e do que está a fazer”, diz, acrescentando que a união a outros fotógrafos foi essencial nessa adaptação.

“Para fotografar Angola é necessário andar em grupo, juntarmo-nos a outros fotógrafos que também querem captar a realidade das ruas. Só assim consegui conhecer alguns bairros”.

A viagem cumpre-se a bordo dos colectivos “Vê Só” e “Views of Angola” – que apresenta como “grupos muitos importantes para quem gosta de fotografia e de aprender a fotografar” –, e com direito a várias distinções.

Entre elas contam-se um lugar no pódio e quatro menções honrosas no outrora BESA Foto, reconhecimento celebrado sem derivas de foco.

“Apanhei uma fase muito boa, em que fotografia em Angola estava em estado puro. Havia muita gente a fotografar com paixão, mas que acabou por se desviar para caminhos que vendem, como o das festas”.

Fiel à rota inicial, distanciada de motivações comerciais, João Carlos mantém o foco nas ruas. Apontado para a vida humana de cada dia.