Ao serviço, por uma nova consciência de parentalidade e masculinidade

Jogou futebol dos 12 anos 29 anos, sem nunca perder de vista os estudos. Agora com 39 anos, Flávio Landim Gonçalves junta à licenciatura em Sociologia e Planeamento a formação na Academia de Líderes Ubuntu, experiência que abriu caminho à criação do projecto Men Talks, orientado para “promover masculinidades mais positivas e envolvidas na luta pela igualdade de género”. Um propósito que, na história de Flávio, se tem expandido a partir da Parentalidade Consciente. Fomos saber como.

por Paula Cardoso

Os gestos de afectuosidade prendiam-se a cada encontro com o filho. “Ela estimulava-me a brincar com ele, mas eu dizia que não tinha jeito para aquilo”.

Num primeiro momento incapaz de seguir as sugestões de Marlene, a sua companheira –“Não sabia como fazer, porque nunca tive essas referências” –, Flávio Landim Gonçalves começou a soltar as amarras quando, há cerca de seis anos, viveu uma grande mudança familiar.

“O meu filho Ivan, fruto de uma relação anterior, veio morar comigo quando tinha 11 anos”, recorda o hoje pai de dois, realçando que esse foi um momento definidor na sua história.

Até aí habituado a ‘fugir’ ao desconforto daquela “falta de jeito” para brincadeiras, e a ‘refugiar-se’ no papel de disciplinador – “a mãe dizia-me quando se portava mal na escola, e eu é que tinha de ter a tal conversa com ele” –, Flávio deixou de ter escapatória.

“Senti que não tínhamos uma relação afectiva, que não era uma relação de amor, de proximidade, mas sim uma relação em que havia respeito pela figura do pai, muito associado ao medo”.

Romper padrões com a parentalidade consciente

A tomada de consciência iniciou uma ruptura com velhos padrões familiares. “Tinha a ideia de que o meu papel era dar ao meu filho condições básicas, porque foi isso que aprendi. Mas quando percebi que não era essa a relação que queria construir, comecei a pensar em maneiras de mudar isso de forma consciente”.

A escolha beneficiou do suporte da companheira, e mãe do filho mais novo.

“A Marlene é quase a minha mentora ao nível do que é a parentalidade consciente, e também da minha relação com o Ivan, primeiro, e agora com o Raphael, que vai fazer quatro anos”.

O processo de viragem trouxe uma nova curva de felicidade, comprovada entre álbuns de fotografia.

“Aos poucos, comecei a soltar-me, o que é visível na questão do riso. Antes nós tirávamos fotografias e eu nunca sorria. Os meus amigos até gozavam comigo, sobretudo os meus amigos de infância, que diziam: ´Está a fazer aquela cara fofa’”.

As memórias da rigidez do passado vêm acompanhadas de mais de 20 anos de relvados.

“No futebol não podes sorrir para o adversário, tens de ter ‘aquela postura’. Lembro-me de em juniores ser campeão distrital e capitão de equipa, de num ano ganharmos tudo, e de eu ser o mais sério de todos”, conta Flávio, de volta ao ambiente dos balneários.

“Também me recordo de estarmos a iniciar os jogos, os meus colegas na brincadeira, a interagir à gargalhada, e eu: ‘Pessoal, já está na altura de nos começarmos a concentrar para o jogo, isto começa-se a ganhar antes. Eu era muito assim”.

O empurrão futebolístico para Dalai Lama

Dono de uma personalidade futebolística um tanto ou quanto estóica, forjada dos 12 aos 29 anos, cedo Flávio se apercebeu da sua transfiguração dentro das quatro linhas.

“No campo era completamente diferente. Tornava-me muito agressivo e muito competitivo, ao ponto de não me reconhecer”.

A metamorfose desportiva acabou por moldar preferências literárias no mínimo “fora da caixa”.

“No 10.º ano, tinha um grande amigo, muito calmo, que gostava muito de ler. Ele lia livros de Filosofia, lia Dalai Lama, e eu pensei: ‘Ok, deixa-me experimentar’. Foi um bocado assim, por arrasto, que comecei a ler os livros mais profundos, digamos”.

O escape à agressividade dos relvados favoreceu não apenas o encontro com o pensamento do líder espiritual tibetano, como espicaçou a curiosidade por outros autores.

“Lembro-me de ler o ‘Elogio do Silêncio’, de Marc de Smetd, no sentido de ficar mais calmo, e de construir a ideia de que queria ser intelectual”.

Equipa Men Talks, a partir da esquerda: Luís, Ricardo, Flávio e Jonni

Porque é que fazemos o que fazemos?

O hábito e o gosto de ler, criado no 7.º ano a partir de um movimento de troca de livros lançado pela então professora de Português, aprofundava-se, assim, na necessidade de apaziguar os nervos.

Aos poucos, ainda que de forma inconsciente, Flávio iniciava o seu processo de desenvolvimento pessoal, facilitado também pela descoberta precoce dos benefícios do coaching.

“Com 15 e 16 anos, via vídeos motivacionais para me preparar para os jogos”, adianta, acrescentando que o plano de treinos incluía ainda o consumo de áudios, ‘exercício’ que mantém até hoje, moldado ao crescente desejo de compreensão da complexidade humana.

“Tinha muita curiosidade por saber o que é que as pessoas pensam, porque é que fazem o que fazem”, nota, realçando que a busca foi sendo aprimorada no contacto com os ensinamentos de figuras do desporto – como o ícone do basquetebol americano, Michael Jordan –, e palestras de profissionais da motivação, como Tony Robbins.

Inspirado pelas reflexões de Robbins, sobre “Porque é que fazemos o que fazemos”, pelas leituras mais filosóficas e pela descoberta da disciplina de Sociologia no secundário, Flávio decidiu especializar-se na área.

A força Ubuntu: aprender para agir

Já depois da formação em Sociologia e Planeamento, o antigo futebolista participou na Academia de Líderes Ubuntu, experiência que abriu caminho à criação do projecto Men Talks, orientado para “promover masculinidades mais positivas e envolvidas na luta pela igualdade de género”.

“Foi através da Academia que conheci o Jonni [Jonatan Benebgui]. Ficámos amigos e, numa altura em que eu e a Marlene estávamos a passar por uma fase má da nossa relação, acabámos horas a falar sobre isso. No final, disse-lhe: ‘Foi muito bom falar contigo’, e os dois começámos a reflectir sobre a dificuldade de os homens conversarem sobre o que sentem”.

Mais do que reconhecerem um problema, Flávio e Jonni puseram em prática as lições de liderança servidora Ubuntu, já depois de o segundo ter participado num evento da associação “Quebrar em Silêncio”.

“Temos o princípio de aprender para agir”, destaca o sociólogo, comprometido com a mudança.

“Fui para a Academia ganhar ferramentas para servir o mundo, tornando-o melhor de alguma maneira. É essa a marca que quero deixar”.

A missão, hoje em dia alargada aos contributos não apenas de Jonni, mas também de Ricardo Higuera e de Luís Henrique, começou por se desenvolver numa roda de proximidade, aberta a partilhas emocionais.

“Abrimos página no Facebook, criámos um evento, convidámos os nossos amigos, juntámo-nos num bar, e falámos sobre o papel do homem, e de onde vem a ideia de os homens não conversarem sobre sentimentos”.

O encontro inaugural assumiu desde logo uma dimensão multicultural – “além dos amigos portugueses, tivemos participantes da França, Itália, Espanha, Guiné-Bissau e Cabo Verde” –, hoje acentuada nas nacionalidades que compõem a equipa.

Deixar cair as “máscaras da masculinidade”

Flávio é português nascido em Cabo Verde, Jonni é espanhol, Ricardo tem origem chileno e Luís é oriundo do Brasil.

Em comum têm a mesma consciência de que é preciso deixar cair “máscaras de masculinidade”, tema que marcou o segundo encontro Men Talks, inspirado numa conversa do podcast de Mikaela Övén e Pedro Vieira, desfiada a partir do livro de Lewis Howes, “Masks of Masculinity”.

“Havia muitos homens que queriam falar, que não se encaixavam na ‘man box’, e que queriam desconstruir o tema”, realça Flávio, adiantando que, a par da boa recepção masculina, o projecto também beneficiou de um bom acolhimento feminino, visível nos convites para presenças em universidades e escolas.

“O meu propósito é que nós homens possamos crescer mais livres na ideia de masculinidade, do que é ser homem, de podermos nos libertar, perceber o papel que desempenhamos na relação com a mulher, com a sociedade, e com os nossos filhos”, reforça o sociólogo, alertando para os efeitos da normalização e reprodução de padrões que não são saudáveis para ninguém.

“Não digo isto de forma sobranceira, nem a julgar, mas tendo em conta toda a minha experiência, em que parto do lado mais machista da educação para o lado mais consciente da parentalidade, e observo a forma como isso impacta na nossa vida”.

A transição de um lado para o outro, conta Flávio, deu-se de uma forma mais cabal a partir de uma conversa com Sofia Mexia Alves, a sua mentora na Academia Ubuntu.

“Estava a contar a história da minha vida, e quando falava nos meus valores, fruto da educação que recebi dos meus pais, associava-os também à porrada que tinha levado. Na minha cabeça, tinha conseguido tornar-me uma boa pessoa por causa disso, porque quando me portava mal havia esse castigo. Mas a minha mentora fez-me ver que me tornei boa pessoa não por causa disso, mas apesar disso”.

A nova consciência trouxe uma nova vivência da parentalidade, e reforçou a convicção de que “podemos sempre crescer e evoluir”. Porque “somos todos maiores do que as nossas circunstâncias”.

 

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