As almas dos brasões assinalados – entre a História e a Memória

A requalificação da Praça do Império, em Belém, reacendeu o debate sobre os símbolos históricos que povoam o nosso espaço público. Entre a glorificação de um passado que deu ao mundo o tráfico transatlântico de seres humanos, e a contestação de quem reclama o respeito pela memória de milhões de pessoas escravizadas, a sociedade portuguesa continua incapaz de debater o tema. A dificuldade ficou, uma vez mais, visível no último programa da RTP “É ou não é? – O Grande Debate”, pelo qual passaremos mais logo n’ O Lado Negro da Força.

por Paula Cardoso

“Como lidar com a nossa herança histórica?”, perguntava-se, na última terça-feira, no programa da RTP “É ou não é? – O Grande Debate”. Para o centro da discussão, conduzida pelo jornalista Carlos Daniel, trouxeram-se algumas polémicas recentes, como a da requalificação da Praça do Império, em Belém.

Em causa está o desaparecimento de 32 brasões florais, ou melhor, a oficialização do desaparecimento, tendo em conta o avançado estado de degradação em que se encontram.

Os símbolos, representativos das armas das capitais de distrito, dos antigos territórios ocupados pelo regime colonial e das Ordens de Aviz e de Cristo, remontam a 1961 e não fazem parte do projecto de renovação do Jardim da Praça do Império, aprovado pela Câmara de Lisboa em 2016.

Cinco anos depois, a decisão volta a estar na ordem do dia, a partir da notícia de adjudicação da obra, combinada com a divulgação do “programa nacional de cultura e memória” da extrema-direita, criado para “preservar todos os símbolos históricos da nação portuguesa”.

Negro, vai para a RTP África

No ruído mediático, ouvem-se vozes de glorificação de um passado que deu ao mundo o tráfico transatlântico de seres humanos, enquanto aqueles que reclamam o respeito pela memória de milhões de pessoas escravizadas continuam a ser silenciados no espaço público.

A última emissão do “É ou não é?” revela bem essa parcialidade. Desde logo, pela composição do painel: em seis presenças, contou-se apenas uma racializada – a de Mamadou Ba.

Como se não bastasse esse habitual apagamento de memórias históricas não brancas –, a condução feita pelo jornalista foi, também ela, reveladora da tendência discursiva de apologia acrítica do passado invasor, e de deslegitimação dos que propõem a inclusão de outras narrativas na História.

O tom enviesado ficou demonstrado logo no arranque da emissão com a dedução de que as vozes críticas pretendem “reescrever a História do colonialismo e do salazarismo”.

Já durante a conversa, Carlos Daniel brindou-nos com uma espécie de adaptação televisiva do “Vai para a tua terra, preto”, ao apontar o caminho da RTP África para as pessoas negras que ambicionem um espaço no pequeno ecrã.

Aparentemente, na cabeça do jornalista, Mamadou Ba reivindicar a inclusão de comentadores no canal público de TV é incompreensível porque já os há na RTP África. Aliás, na própria RTP há um “de cor”.

Não admira por isso que se ouça – de quem parece acreditar que o lugar televisivo dos negros é na RTP África – um chorrilho de perguntas maldosas, todas dirigidas a Mamadou Ma.

Pouco importa que as ideias e a acção de Mamadou nada tenham que ver com violência. Para o jornalista, é Mamadou quem tem de responder pelas leituras delirantes dos que consideram que criticar a narrativa histórica portuguesa é defender que se queimem livros, derrubem estátuas e se refaça toda a toponímia nacional.

Incapaz de criar um espaço de debate sério e aprofundado, a RTP acabou por mostrar como não se deve lidar com a nossa herança histórica: de forma umbiguista e sobranceira, com a pretensão de quem se acha dono e senhor de todo o conhecimento.

A discussão prossegue mais logo, a partir das 21h30,  n’ O Lado Negro da Força, o talk-show online das noites de quinta-feira, que pode seguir no Facebook e no YouTube. Com José Rui Rosário, Pedro Filipe, Paula Cardoso, Mariama Injai e Danilo Moreira.