As armadilhas coloniais do caso “Filha da Tuga”, desarmadas em Carta Aberta

“As recentes críticas à música “Filha da Tuga”, interpretada por Irma Ribeiro (escrita por Carolina Deslandes e produzida por Agir e Sons em Trânsito), bem como à performance de Rita Pereira, geraram um debate público – protagonizado essencialmente por pessoas negras – que a comunicação social e a branquitude se apressaram a despolitizar e a ridicularizar, mostrando como a experiência negra tende a ser desprezada e negada na sociedade portuguesa”. Assim começa a Carta Aberta: As armadilhas coloniais do caso “Filha da Tuga”, assinada por mais de 70 pessoas e colectivos. O Afrolink é um dos subscritores, publicando a mensagem na íntegra.

Carta Aberta: As armadilhas coloniais do caso “Filha da Tuga”

As recentes críticas à música “Filha da Tuga”, interpretada por Irma Ribeiro (escrita por Carolina Deslandes e produzida por Agir e Sons em Trânsito), bem como à performance de Rita Pereira, geraram um debate público – protagonizado essencialmente por pessoas negras – que a comunicação social e a branquitude se apressaram a despolitizar e a ridicularizar, mostrando como a experiência negra tende a ser desprezada e negada na sociedade portuguesa.

O discurso de ódio inundou as redes sociais de pessoas como Mafalda Fernandes, ativista e autora da página de Instagram Quotidiano de uma Negra, que procuraram trazer à discussão questões como o lusotropicalismo e as suas reconfigurações contemporâneas, a falta de representatividade negra nas artes, lugar de fala, colorismo e apropriação cultural. Neste sentido, esta carta é, antes de mais, uma nota pública de solidariedade com Mafalda Fernandes e com todes aqueles que, de alguma forma, viram as suas vozes desvalorizadas e silenciadas ao longo deste processo.

Apresentando-se como um tributo à diversidade étnico-racial, “Filha da Tuga” está pejada de resquícios coloniais. Em 2022, depois de tudo o que se passou – dos casos de violência policial ao negacionismo sistemático das autoridades –, como pode uma música supostamente antirracista utilizar sem pejo a palavra “pretos”, camuflagens lusotropicalistas como a ideia de “mistura”, ou a palavra “descoberta”, quando esta está tão carregada de séculos de glorificação do colonialismo? Não deveria também um tema desta natureza ser produzido por uma equipa com maior representatividade negra – física e política?

Por outro lado, os problemas do lugar de fala e da pertença identitária das pessoas mestiças que “Filha da Tuga” aborda e suscita não são questões unicamente “pessoais” e decorrem dos processos de racialização. A figura da “mulata” do mito lusotropicalista e a posição do “assimilado” no Estatuto do Indigenato foram construídas pelo sistema colonial e serviram para manipular a categoria dos mestiços, introduzindo-lhe um status de pertença ambivalente e uma hierarquia de tom de pele – colorismo – que são fruto do racismo e operam em proveito da branquitude, mas também do patriarcado. Esta realidade é expressão de todo um sistema predatório das vidas das mulheres negras, reduzidas a fruta e bebida, objetos de satisfação de alguém. Isto é violência e há muito que este cartão-postal de uma Lisboa pretensamente mestiça é insuportável.

Mas o debate acabou por ser desvirtuado a partir do vídeo de Rita Pereira, que com tranças e sacudindo o “gingado”, dança e canta “Filha da Tuga”. Os media que noticiaram o caso preferiram inflamar a “polémica” em vez de informar de modo imparcial e com contraditório. Dessa forma, anularam a possibilidade de se discutir questões como os estereótipos exotizantes da mulher negra, a importância do lugar de fala, que a negritude não é adereço e, portanto, a apropriação cultural.

Convocamos à memória o caso das camisolas dos pescadores da Póvoa de Varzim, recriadas por uma ‘designer’ norte-americana em 2021, e como aí até se acionaram os meios judiciais para combater a “apropriação abusiva”. É preciso lembrar também como historicamente a produção cultural negra tem sido explorada por uma indústria dominada por uma burguesia branca, vendo até mesmo a sua origem branqueada (como aconteceu com o Rock e o Fado).

Por outro lado, quando elementos das culturas negras são usados por pessoas brancas como mera forma de entretenimento e estetização, há um potencial esvaziamento político do seu significado de resistência, tornando-os mercadoria. Portanto, valorizar pode passar, exatamente, conforme a nossa posição nas relações de poder, por não repetir o gesto secular de saque.

Neste sentido, há um desafio que se coloca aos meios de produção cultural, sejam artísticos, jornalísticos ou outros, que é a descolonização das suas práticas e imaginários. Nós, abaixo-assinados, recusamos cair na armadilha da distração que, em vez de discutir o essencial, ou seja, a relação intrínseca entre apropriação cultural e racismo estrutural, se foca em polémicas adjacentes que em nada contribuem para uma política cultural pública antirracista, capaz de desconstruir o lusotropicalismo, reforçar a visibilidade e a representatividade das pessoas negras através das artes ou da produção cultural.

 

Subscrições coletivas

Afrolink

Associação ForçAfricana

Associação Kazumba – Educação e Equidade

Associação Mural Sonoro

Bantumen

Chá de Beleza Afro

Colectivo SaMaNe – Saúde das Mães Negras

Coletivo Artístico Nêga Filmes & Produções

Coletivo Mulheres Negras Escurecidas

DJASS- Associação de Afrodescendentes

Grupo EducAR

GTO LX – Grupo Teatro do Oprimido de Lisboa

Iniciativa Cigana

INMUNE – Instituto da Mulher Negra

Movimento SOS Racismo Portugal

MUXIMA BIO BV

Nalini Seik

Núcleo Antirracista de Coimbra

O Lado Negro da Força

Passa Sabi

UNA – União Negra das Artes

 

Subscrições individuais

Ana Alves, Psicóloga

Ana Fernandes, Produtora, gestora e agente cultural.

Ana Luísa Brito

Ana Rita Alves

Ana Sofia Palma

Ana Stela Cunha, Antropóloga e Investigadora CRIA

Anabela Simões Ferreira

Ângela Gouveia

Anizabela Amaral, Jurista

Ariana Furtado, Professora do 1.º Ciclo

Augusto Neves Júnior, Empresário de turismo

Cristina Roldão, Socióloga

Danilo Moreira, Presidente do Tás logado? – Sindicato dos Trabalhadores de Call Center

Diógenes Parzianello, Sociólogo

Edna Tavares

Evalina Dias, Dirigente Associação Djass

Flavia Palladino, Pesquisadora

Joana Cabral, Psicóloga, Professora Universitária, Dirigente SOS Racismo

Joana Mouta, Gestora de projeto

João Delgado, Professor

João Rosário, Jornalista

Joel José Ginga

José Neves, Percussionista

José Rui do Rosário

José Semedo, Professor

Ladygbrown, Dj

Leonardo Botelho, Estudante

Luana Coelho, Investigadora

Lúcia Gomes, Advogada

Lúcia Vicente, Escritora

Luís Camanho, Designer

Mamadou Ba, Militante antirracista e investigador

Margarida Rendeiro, Professora universitária e investigadora

Maria Gil, Actriz

Marisa Paulo, Artista, performer e pesquisadora

Myriam Taylor, Defensora de Direitos Humanos

Neusa Sousa, Jornalista

Nirvana Reis Araújo, Advogada estagiária

Paula Cardoso, Fundadora da rede Afrolink

Pedro Schacht Pereira, Professor universitário

Piménio Ferreira, Militante antirracista

Raquel Lima, Investigadora de Estudos Pós-Coloniais

Rita Cássia Silva, Antropóloga, atriz-performer e ativista

Rita Coxe

Rodrigo Ribeiro Saturnino, Sociólogo e artista.

Silvia Jorge, Agricultora

Silvia Maeso, Socióloga e investigadora

Sinho Baessa de Pina, Vice-Presidente Ass. Cavaleiros de S. Brás, dinamizador comunitário

Sofia Reino

Soraia Simões de Andrade, Escritora e investigadora

Vanda Marques da Silva, Operadora de Tráfego Marítimo

Vanessa Sanches