As palavras andantes de Sónia Sultuane levam Moçambique ao mundo

Em Portugal até ao final desta semana, a escritora e artista plástica moçambicana Sónia Sultuane falou com o Afrolink sobre a sua próxima obra de poesia, uma nova exposição, e o movimento do seu projecto “Walking Words” (“Palavras Andantes”). Antes do regresso a Maputo, a autora ainda teve tempo para partilhar os planos do próximo voo a Lisboa, marcados pela celebração dos primeiros 20 anos de assinatura literária. A poetizar desde 2001.

por Paula Cardoso

Leva e traz palavras. “Elas estão por aqui, acho que um pouco por todos os sítios por onde ando”. Também renova ideias – “Viajar para mim é fonte de inspiração” –, e, pelo caminho, ainda expande o círculo de relações. “Sempre que saio de Moçambique, e até mesmo em Moçambique, tenho a oportunidade de me cruzar com gente diferente, gente que me ensina alguma coisa”.

Inseparável das palavras e do movimento de ir e vir, a escritora moçambicana Sónia Sultuane, deu-lhes, em, 2008, força multiartística, através do projecto “Walking Words”.

Apresentado pela própria como o seu “maior sonho”, em que a literatura se encontra com as artes plásticas e outras expressões criativas, as Palavras Andantes, ou Palavras que Andam, circulam também em Portugal, embora ainda não como projecto, mas ‘apenas’ enquanto manifestação de vida.

A esperança de longa vida

De passagem por Lisboa para exames médicos, Sónia trouxe consigo o peso de algumas inquietações de Saúde. “Eu vim, acima de tudo, com toda a fé e toda a esperança que estivesse tudo bem”, diz, já sob o efeito da melhor terapia: as boas notícias.

“Estou limpa do cancro há cinco anos”, celebra, firme em estabelecer distâncias entre a vida e a morte. “Não tenho medo de morrer, tenho medo de não viver o próximo instante”.

Prestes a regressar a Moçambique, para onde voa no final da semana, Sónia leva na bagagem “a esperança de longa vida, por ter ultrapassado esses cinco anos”, livre das doenças oncológicas que, no passado, quase lhe hipotecaram o futuro.

“Também levo de volta a fé, que é muito importante, e levo também a poesia comigo”.

Poesia em Roda Viva, com pérolas de Moçambique

Convidada para a estreia do evento “As pérolas da Poesia Moçambicana”, inserido no projecto “Poesia em Roda Viva”, a escritora juntou, na última sexta-feira, 16, as suas palavras às de Hirondina Joshua e Melita Matsinhe, conterrâneas e colegas de arte literária que, embora não presencialmente, também entraram na roda.

O momento aconteceu no restaurante moçambicano Roda Viva, em Alfama, com a proposta de “reinventar encontros poéticos além-mar e em tempos tempestuosos”, conforme a descrição de Venâncio Calisto, que assina a curadoria. 

Sónia Sultuane, fotografada por Paulo Alexandre Photography

Sónia Sultuane, fotografada por Paulo Alexandre Photography

“O Venâncio é um jovem que está tão entusiasmado com a divulgação da literatura e de outras artes de Moçambique aqui em Portugal, que o nosso contacto só poderia ser muito interessante. É muito bom saber que há moçambicanos a singrar por cá, a fazer coisas muito interessantes, e que realmente vestem a camisola de Moçambique fora do país”.

Empenhada em fortalecer essa embaixada, Sónia Sultuane assume o compromisso de apostar mais na divulgação da sua personalidade artística.

“Pus sempre a minha vida profissional em primeiro plano”, admite a gestora de comunicação e imagem, cargo que acumula, em Maputo, com responsabilidades de chefe de escritório.

“Agora com o tempo, talvez também derivado a tudo o que eu passei, em termos de saúde, quero muito fazer o registo da minha vida artística de outra forma. Então tenho-me estado a dedicar mais a isso”.

20 anos de publicações poéticas

O exercício de projecção da identidade extra-institucional promete ganhar impulso com o próximo livro de poesia e uma nova exposição, adiada pelas restrições da pandemia.

“Queria ter exposto em Março, exactamente quando começou toda a situação de confinamento. Mas primeiro ficámos naquela: ‘Ah, isto há-de ser um mês, depois passámos para dois meses, a seguir para três, e a verdade é que daqui a pouco estamos nesta situação há um ano”.

O prolongar dos condicionalismos, assinala Sónia, desafia velhas determinações. “Gosto muito do contacto entre as pessoas, da partilha, por isso, fazer uma exposição sem gente para mim seria algo muito complicado. Mas, ao fim deste tempo, estou a pensar que talvez tenha de avançar assim, abrir mão dessa minha forma de estar, e fazer mesmo a exposição, com ou sem Covid”.

Os planos para a mostra animam já o calendário de 2021, marcado pelo 20.º aniversário do primeiro livro da autora, intitulado “Sonhos”.

A esta obra poética de 2001 seguiram-se “Imaginar o Poetizado”(2006), “No colo da Lua” (2009) e “Roda das Encarnações”(2016), numa trajectória literária igualmente composta por dois contos infantis – “A Lua de N’Weti”(2014) e “A boneca Celeste” (2017).

Fiel ao ritmo das publicações poéticas, que têm surgido em intervalos de cinco anos, a moçambicana já teceu as linhas do sucessor de “Roda das Encarnações”.

“Tem a ver com as minhas partilhas, com os meus sentimentos, mas também com as minhas viagens interiores e exteriores”, antecipa Sónia, guiando-nos pelos caminhos que traçaram o destino da próxima obra.

“Marcou-me muito voltar à Ilha de Moçambique, porque parte da minha infância foi passada na Ilha, naquela zona do Norte do país, Nacala e Nampula, Mossuril, Chocas…”, revisita a escritora, que reactivou as memórias dos primeiros anos de vida no processo de construção da mostra “Pancho: outras formas e olhares”, montada a quatro mãos, com o colega Jorge Dias.

“Eu voltei à Ilha duas vezes, no ano passado, porque fui lá fazer essa exposição. Já tinha começado a escrever, porque tenho esta coisa do ciclo de cinco anos, que me dá tempo para amadurecer e repensar, mas foi a Ilha que fez com que realmente eu resolvesse tirar a minha próxima obra”.

A inspiração da Ilha de Moçambique

O título, que a autora quer ver editado em Portugal, junta à inspiração nas vivências infantis, aprendizagens actuais e um pulsar espiritual.

“É muito inspirado no que senti ao regressar àquela Ilha, que é próxima, mas também muito distante daquela que conheci. É percorrer os lugares em mim própria, reconhecer que quando somos mais miúdos temos a tendência de transformar as coisas.

Por exemplo, aquelas portas da Ilha para mim na altura eram gigantescas”.

Atenta às flutuações da nossa percepção do mundo – “nós vamo-nos diluindo” –, a multifacetada artista lembra como as tempestades se convertem em bonanças.

“Quando nós estamos com um problema, ele parece enorme, mas depois quando passamos por ele…a dimensão é outra”.

Especialista em redimensionar adversidades, Sónia Sultuane prepara-se agora para tentar redimensionar também a presença da poesia moçambicana em Portugal.

“É importante para mim publicar um livro de poesia por cá, também para dar visibilidade aos muitos poetas que Moçambique tem”.

A escritora defende que a presença de uns acaba por despertar o interesse para outros, incentivando uma maior produção literária.

“Mas quem continua a dar esse grande estímulo a Moçambique é o Brasil, apesar de a nossa ligação com Portugal até ser muito mais profunda”, observa Sónia Sultuane, determinada em partilhar a sua assinatura poética também com os portugueses. Até lá, podemos cruzarmo-nos com as suas “Walking Words”, transportadas em sacolas, esculturas e vestidos. Lugares por onde as palavras seguem livres, sem fronteiras.

Acompanhe a viagem de Sónia Sultane, na sua morada web https://soniasultuane.com/

 

Foto de Mónica de  Miranda