Aviso: este programa pode produzir desconforto em corpos brancos

Em dupla, Melissa Pereira e Nael d’ Almeida criaram as propostas “Desordem do Conceptual Branco” e “Linguagens e Identidades” para a terceira edição do Rama em Flor, festival que busca celebrar a cultura feminista e queer. O programa, adiantam ao Afrolink, assume a intenção de racializar o corpo branco, procurando causar um desconforto precursor de acção. A começar esta noite, às 19h, em Lisboa, com um concerto de música clássica, inteiramente protagonizado por artistas negros.

Texto por Paula Cardoso

Fotos de Rama em Flor

Mudam-se os rostos, ensaiam-se enquadramentos diferentes, mas, a cada plano de gravação, é a mesma geografia periférica que permanece sob foco. “Olha, aqui está a vida das pessoas negras. Vejam os talentos, vejam como convivem umas com as outras. É sempre o mesmo registo, por isso seria fixe racializarmos os corpos brancos”.

A ideia de Nael d’ Almeida, aqui partilhada por Melissa Pereira, deu o mote para a dupla criativa descartar mais um produto de documentário, e desenvolver as propostas “Desordem do Conceptual Branco” e “Linguagens e Identidades”, incluídas na terceira edição do “Rama em Flor”, festival que busca celebrar a cultura feminista e queer.

“O que propomos, acima de tudo, é falar de branquitude, das consequências de toda a idealização do branco como bom e do negro como mau”, explica Nael, lembrando que a ocasião favorece uma inversão de papéis.

“Já que estamos num festival de maioria branca, vamos puxar as pessoas brancas para a conversa, e permitir que façam a sua reflexão. Em vez de ficarem a olhar para as nossas vidas gravadas num documentário, e a dizerem coitadinhos, têm a oportunidade de perceber que são responsáveis pela forma como o sistema se constituiu. Podem reflectir activamente sobre isso e ter em conta o seu lugar de privilégio”.

Contrapor a invisibilização de autores negros e apropriações históricas

O convite à auto-análise branca chega em quatro momentos, onde se incluem conversas, exposições, e um concerto de música clássica, marcado para esta noite, às 19h.

Com um elenco inteiramente negro, o espectáculo junta Suzana, Cire, Flow, Eva e Ari no palco do Novo Negócio ZDB, em Lisboa, criando um espaço que, segundo a sinopse, pretende contrapor “a invisibilização de autorus negres e a apropriação que tem sido feita ao longo da história”.

A meta, sublinha Nael, sobressai já das notas de bastidores. “Todos os artistas aqui presentes vêm de uma vertente clássica.  No outro dia, estava no ensaio e apercebi-me que nunca tinham estado num ambiente profissional em que toda a gente fosse negra e em que realmente pudessem falar. Por isso, o que me está mesmo a dar prazer é ver corpos negros a poderem se pronunciar, a ter as suas próprias narrativas, a poderem falar, a poderem conviver e a fazerem essas ligações”.

A par do momento musical, enquadrado na proposta “Desordem do Conceptual Branco”, a programação criada por Melissa e Nael reserva-nos uma conversa sobre branquitude, moderada pela rede virtual e jovens africanos na diáspora “A Fonte”.

O ponto de partida para essa discussão, agendada para a próxima quinta-feira, 10, às 16h, expressa as reflexões que a dupla quer induzir: “O que entendes de branquitude? O que é ser branco para ti? O que pensas quando falamos de branquitude?”.

A acção que nasceu de um lugar de desconforto

A ideia passa por criar “um certo desconforto”, admite Melissa, desfiando intenções.  “Vamos ser honestos: normalmente quando estamos num espaço em que se fala sobre racismo, a maior parte das pessoas que têm a palavra são brancas. Isso de ver constantemente pessoas brancas a falar sobre racismo, a falar sobre mim, cria-me um certo desconforto. Então, aqui vamos inverter o papel. Acredito que esse desconforto é importante para que as pessoas passem à acção. É mesmo criar a desordem”.

Além de assumir o compromisso de trazer para a programação do “Rama em Flor”, “corpos negros ou corpos não heteronormativos, não cisgénero, que muitas vezes são tidos pelo sistema como algo diferente, que não encaixa”, a dupla criativa propõe apresentar diferentes linguagens, “ver como se expressam e como a sociedade patriarcal, branca e cis se expressa relativamente a elas”.

O caminho traçado para o fazerem passa pela exposição “Linguagens e Identidades”, que junta os trabalhos de Filipa Bossuet, Sol Duarte e Aicy, bem como pela conversa com o mesmo mote, que reúne Alexa Santos, Tristany e Naara. Para seguir nos dias 23 de 26 de Junho, respectivamente.

Até lá, Melissa e Nael partilham intenções. “Se as pessoas brancas querem ou não fazer a reflexão…isso é com elas, mas com esta proposta sabemos que tentámos”, nota Nael, enquanto Melissa insiste no poder do desconforto.  “As pessoas brancas precisam dele para acordar para a vida”. E para a acção.

 

Consulte a programação completa do “Rama em Flor”