Biografia ou sátira racista? Viagem pelas recordações da Preta Fernanda

“Um povo sem o conhecimento da sua história, origem e cultura é como uma árvore sem raízes”, escreveu o jamaicano Marcus Garvey, um dos ícones maiores do movimento pan-africano. Retomamos aqui o seu pensamento para enquadrar as linhas que se seguem. Com actualização semanal, darão a conhecer, de forma sucinta, figuras e episódios que fazem parte do legado negro. Começámos pela Lisboa Africana quinhentista, e a história de Simoa Godinha, prosseguimos na mesma cidade ao encontro do Pai Paulino e hoje mantemos a viagem lisboeta. À boleia das Recordações da Preta Fernanda.

por Paula Cardoso

Mulher negra, popularizada na Lisboa boémia do início do século XX, onde tão depressa se movimenta no circuito da prostituição, como entretém audiências travestida de toureira. Os créditos colam-se à história de Andreza de Pina – também conhecida como Fernanda do Vale e Preta Fernanda –, e a eles junta-se outra referência habitual: é dela a representação feminina aos pés estátua do Marquês Sá da Bandeira, em Lisboa.

Será mesmo? O livro “Recordações d’uma Colonial – Memórias da Preta Fernanda” diz que sim, mas, conforme vamos ler nas próximas linhas, ao contrário do que sugere a classificação editorial da obra, esta não é uma autobiografia, nem sequer uma biografia.

Publicado em 1912, com as assinaturas de A.Totta e F.Machado, o livro foi reeditado cerca de oito décadas mais tarde, com uma actualização no mínimo questionável. Na capa, o nome Fernanda do Vale substitui os de Totta e Machado.

Reconhecimento tardio de créditos autorais impossíveis de atribuir no início do século XX? Ou apropriação abusiva de uma autoria improvável, porém mais apelativa do ponto de vista editorial?

Programa racista claro

A fiabilidade da narrativa contida nessa obra – que a Teorema reeditou em 1994 sob o título “A Preta Fernanda: Recordações d’uma Colonial” – é analisada à lupa por Diana Gomes Simões, num artigo académico de 2018.

Partindo de uma pergunta – Recordações d’ uma colonial é uma autobiografia credível ou uma sátira racista? –, a especialista defende que o livro “não deve ser lido como um relato fidedigno da vida” de Fernanda.

Diana Simões sublinha que a narrativa construída, “por ser posta na voz da própria Fernanda, torna claro um programa racista por parte dos autores, pois é altamente inverosímil alguém referir-se a si mesma nestes termos: é incapaz de apreciar boa música, porque os seus ouvidos eram ‘feitos da mesma rija substância que se adopta na fabricação de pentes e de botões’ e o seu cérebro era ‘sólido no invólucro, mas frágil no miolo’”.

A conclusão é suportada por várias passagens de Recordações, reveladoras de como “a ideologia colonial da superioridade branca em relação aos negros africanos é explicitamente veiculada no texto e facilmente captada pelos leitores”.

A realidade da ficção

Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Portugueses e Ingleses, a especialista afirma que o livro é uma “sátira abertamente racista da população africana negra que transitava das colónias portuguesas para a metrópole”.

Diana nota ainda como A.Totta e F.Machado, “dois autores portugueses cuja identidade socio-histórica os coloca do lado oposto a Fernanda, e por isso numa posição de superioridade”, fazem uso da voz negra “para veicular sentimentos típicos do patriarcado branco colonial português”.

Já Fernando Beleza, do Departamento de Estudos Portugueses da Universidade de Newcastle, admite que Andreza “pode ter fornecido informações” aos autores, “uma vez que estava viva no período que antecedeu a publicação”, mas não hesita em classificar o texto como “uma obra de ficção”.

No artigo “Das margens do império: raça, género e sexualidade em Recordações d’uma colonial (memórias da preta Fernanda)”, Fernando passa a pente fino as incongruências da suposta autobiografia.

Mais do que isso, explora, em várias notas, aspectos comprovadamente biográficos de Fernanda. A começar pelos registos documentais.

“Andreza de Pina é o nome que surge nos seus registos de casamento e de óbito”, informa Fernando, acrescentando que a notícia da sua morte, publicada nos jornais o Século e Última Hora, também referia essa identidade. Não faltam, contudo, menções a outros nomes, nomeadamente Andrêsa do Nascimento.

As incertezas na história da Preta Fernanda estendem-se ao seu país de origem. Embora Cabo Verde seja a referência dominante, Fernando Beleza apresenta a Guiné-Bissau como local de nascimento mais provável, e o arquipélago da Morabeza como território de baptismo. “Esta é pelo menos a informação que se encontra nos seus registos de casamento, óbito e enterro”. 

Igualmente registada está uma performance de Fernanda na praça de Algés, travestida de toureiro, episódio noticiado nas páginas d’ A Capital.

Os documentos permitem ainda estimar que Andreza morreu em 1927, com cerca de 50 anos. E sem nenhuma biografia para contar a sua história.