“Careca Não”: a música que faz crescer a identidade capilar do homem negro

Dino Ferraz quebra barreiras sociais e geográficas um pouco por todo o mundo com a música “Careca Não”. O single transforma-se numa campanha de sensibilização contra a discriminação sofrida em Angola por homens negros que optam por não rapar o cabelo e, por isso, são tratados como pessoas irresponsáveis, profissionais sem credibilidade, ou cidadãos indignos de direitos elementares. Comprometido em alertar para esta situação, presente também nas escolas e universidades, o cantor angolano coloca a sua música ao serviço do combate aos preconceitos capilares. Pelo caminho, reforça o propósito interventivo da sua carreira, que dá a conhecer ao Afrolink.

por Filipa Bossuet

“As pessoas olham para ti como se fosses alguém que não tem foco, alguém sem juízo ou responsabilidades”, conta Gerson Nunes, gestor de Recursos Humanos. Já o médico Joaquim Massango acrescenta: “Não cabia na cabeça de algumas pessoas que eu pudesse levar a sério os meus estudos porque tenho o cabelo grande”. Por sua vez, o jornalista Nsexi Nunes partilha: “Já tive dificuldade em tratar de documentos por causa do meu cabelo”.

Os testemunhos fazem parte de uma campanha de debate e sensibilização, criada a partir de “Careca Não”, o single do cantor angolano Dino Ferraz que servirá de mote para a iniciativa.

A obra musical fala das experiências de Gerson Nunes, Joaquim Massango, Nsexi Nunes e de uma realidade angolana, sobre o estereótipo do cabelo afro, trazendo a importância do respeito e tolerância à diferença, através do empoderamento capilar do homem negro.

“O tema ‘Careca Não’ é sobre quem não respeita a opção da outra pessoa. Em Angola ainda temos uma conduta muito baseada no europeu. Na visão de alguns intelectuais, para seres uma pessoa considerada apresentável, tens de cortar o cabelo. Gostaria que respeitassem o meu cabelo, do mesmo modo que gostaria que respeitassem outros cabelos ou a ausência dele”, afirma o intérprete.

Produzida por Toty Sa’Med e com letra de Júlio Matomina, a música resulta da melhor ideia de um trabalho de equipa, salienta Dino Ferraz, explicando que existiu uma recolha de histórias reais, em Angola, de homens negros que usam cabelo comprido, e, por isso, são impedidos de entrar em instituições públicas, perdem vagas de emprego ou lhes é pedido, em tom de gozo, o documento do cabelo.

“Tivemos depoimentos de mães que tiveram os filhos obrigados a cortar o cabelo, no ensino primário, quando existiam crianças de outras cores com o cabelo até às costas”, revela Dino, ainda a digerir o impacto internacional que a música está a ter, expresso nos depoimentos que passou a receber de países como Brasil e Canadá. 

Dino Ferraz e a equipa aguardam por uma situação pandémica mais controlada em Angola para realizarem encontros e palestras nos quais possam debater e reflectir sobre as problemáticas apresentadas em “Careca Não”. A intervenção passa ainda por envolver o Ministério da Justiça e da Cultura, no sentido de questionar a legalidade de uma regra aplicada em escolas e universidades privadas de Luanda, que proíbe os rapazes de usarem cabelo comprido.

Apesar de o artista angolano nunca ter projectado a criação de uma campanha, a sua obra musical surge como veículo para uma transformação de consciência e acção, reflexo do impacto que pretende trazer com a sua carreira, iniciada há seis anos.

Música como ferramenta de consciencialização 

Para o intérprete de “Careca Não”, num país como Angola, em que o histórico de corrupção é terrível e os problemas sociais e económicos abundam, “mais do que serem entretidas e embriagadas, as pessoas precisam de obras que as façam reflectir, que as tragam para uma luta consciente, de modo que aconteça mudança”.

Desse pensamento resulta uma velocidade de produção diferenciada, em que o artista dá um espaço maior de tempo para o lançamento de novas obras, em vez de se deixar enredar numa lógica comercial desenfreada.

“Quando associas a tua música a causas que realmente fazem diferença na vida das pessoas, tu chegas a essas pessoas sem forçar, acontece de forma natural”, nota o criativo de 33 anos, que tem nas suas influências musicais figura ímpares da cultura angolana, como Filipe Mukenga, André Mingas e Bonga.

Partindo de uma matriz assente no semba, kilapanga, massanga e até no kuduro, Dino faz uma fusão com ritmos europeus e americanos que ouviu ao longo do seu crescimento, apresentando-se como um artista híbrido.

Artista em ascensão 

Cantor, compositor e intérprete, começou com oito anos a cantar numa igreja, no seio de uma família cristã. Aos 15 anos decidiu seguir uma carreira musical e hoje é formado em música na modalidade de canto ligeiro profissional pelo Instituto Superior de Havana, em Cuba.

Além de criar as suas obras, Dino compõe para artistas de música popular angolana como Anna Joyce.

Firme no caminho de se tornar um artista consagrado, a sua discografia reúne seis músicas em seis anos de carreira, percurso já distinguido no Festival da Canção de Luanda: em 2015 venceu o prémio de Melhor Intérprete, em 2018 o de Melhor Composição e co-produção. A estes troféus, o músico poderá somar, em breve, um novo galardão: concorre a um prémio na categoria Melhor R&B/ Soul do Angola Music Awards, com o tema “Perfeito Amor”.

Comprometido com a música interventiva que desenvolve, Dino Ferraz pretende continuar a trabalhar para a relevância do seu trabalho artístico, de falar por aqueles cuja voz não é escutada.

“Eu sempre lutei para ser um artista relevante, não propriamente famoso, e é isso que continuarei a fazer”. Sem pressa, com propósito.