“Chamar ossos” para reconhecer vidas, com Zia Soares no palco

A encenadora Zia Soares sobe amanhã, 2, às 21h, ao palco da Maison de la Culture d’Amiens, em França, com a peça “Fanun Ruin”, título em tétum, língua nacional de Timor-Leste, que em português significa “Chamar Ossos”. O espectáculo, estreado em 2022, na Fundação Calouste Gulbenkian, em, Lisboa, resulta de um encontro da também actriz “com os crânios de 35 timorenses decepados que desde 1882 se encontram reféns em Coimbra”. Que violências encerram? Quantas vidas cabem no seu reconhecimento? Reflectimos, a partir da sinopse: “É no confronto com a morte sem rosto que irrompe a utopia de dar carne aos ossos, de outras de desfigurar a arquitetura do arquivo, de trazer à boca a palavra que edifique a casa onde por fim se possa repousar”. Em paz?

Texto por Afrolink

Foto de capa de Susana Paiva

Enquanto Portugal continua sem reconhecer a violência criminosa do regime colonial, consumada em massacres, violações, pilhagens e inúmeros apagamentos culturais, o legado de atrocidades ganha expressão a partir de um necessário trabalho de memorialização construído por quem continua a sentir na pele os efeitos da desumanização.

Com origens timorenses e angolanas, a encenadora Zia Soares tem sido uma das artífices dessa missão de consciencialização histórica, projectando em palco episódios do passado que têm sido distorcidos ou que permanecem invisibilizados e silenciados.

É o caso da peça “Fanun Ruin”, título em tétum, língua nacional de Timor-Leste, que em português significa “Chamar Ossos”. Estreada em 2022, na Fundação Calouste Gulbenkian, em, Lisboa, a criação resulta de um de um encontro da também actriz com “os crânios de 35 timorenses decepados que desde 1882 se encontram reféns em Coimbra”.

Desde o século XIX armazenados no Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra, esses testemunhos do horror perpetrado durante as invasões portugueses mergulharam Zia Soares num contínuo de questionamentos. “Como eram os rostos dos decepados? Onde estão os restos dos corpos dos crânios? Quando retornam os ossos usurpados? Quem os espera? Quem ainda se lembra? Quem quer esquecer? Como encarnar os ossos?”.

As reflexões apresentadas em “Fanun Ruin” sobem amanhã, 2, às 21h, ao palco da Maison de la Culture d’Amiens, em França, inseridas na programação do Festival Amiens Tout-Monde.

Lembrando aquilo que o espectáculo é e não é, a encenadora estabelece fronteiras. “Não é sobre reescrever a História, mas sobre escrevê-la, protagonizando-a e performando-a, aceitando antecipadamente que ela, ainda, permanecerá inacabada. Trata-se de abrir o lugar do luto, do cerimonial, onde a incomensurável violência da estropiação, da violação, da desumanização dá lugar ao silêncio, e só o sussurro pode irromper qual veneno que se propaga vagarosamente e se enraíza no inadiável pulsar da ulteridade”.

A intenção por detrás de “Fanun Ruin” evidencia igualmente um desejo de pacificação a partir do enfrentamento. “É no confronto com a morte sem rosto que irrompe a utopia de dar carne aos ossos, de desfigurar a arquitetura do arquivo, de trazer à boca a palavra que edifique a casa onde por fim se possa repousar”. Na paz possível.

Zia Soares, na peça “Fanun Ruin”, fotografada por António Castelo

Zia Soares, na peça “Fanun Ruin”, fotografada por Susana Paiva

Ficha técnica

Autoria, Direcção, Interpretação: Zia Soares
Cenografia, figurinos: Neusa Trovoada
Co-criação de vídeos: António Castelo
Música: Xullaji
Co-criação de movimento: Lucília Raimundo
Iluminação: Mafalda Oliveira
Vídeo e projecção: Cláudia Sevivas
Elenco de vídeo: Agostinho de Araújo, Aoaní Salvaterra, Domingos Soares, Fátima Guterres, Lídia Araújo, Lucília Raimundo, Manuel de Araújo, Priscila Soares
Assistência à cenografia: Carlos Trovoada, Nig d´Alva
Cabelos: Zu Pires
Maquilhagem: Ana Roma
Fotografia: António Castelo, Susana Paiva
Assistência geral: Aoaní d´Alva, Mariana Frazão
Co-produção: Fundação Calouste Gulbenkian, Sowing_arts
Apoios: Centro Cultural da Malaposta, Polo Cultural Gaivotas Boavista
Zia Soares é uma artista apoiada pela apap – Feminist Futures, um projecto co-financiado pelo Programa Europa Criativa da União Europeia
Agradecimentos: Domingos Soares e Priscila Soares, Agostinho de Araújo, Ana Alves, António Soares Nunes, Bruno Sena Martins, Dulce Fernandes, José Amaral, Luís Costa, Manuel de Araújo

Esta apresentação realiza-se no âmbito do programa europeu apap – FEMINIST FUTURES, um projecto co-financiado pelo Programa Europa Criativa da União Europeia