Chelas proclamada a capital de Lisboa, com honras de grande ecrã

 

Recém-estreado no Doclisboa, o filme “Chelas nha kau” (“Chelas meu lugar”) leva-nos ao encontro do Bataclan 1950, grupo de amigos que, entre rimas de rap e convivências quotidianas, apresenta os caminhos que demarcam Chelas como “a capital de Lisboa”. Instaurada para romper fronteiras carregadas de preconceito e discriminação.

Texto por Paula Cardoso

Fotos de Gonçalo Castelo Soares

A desconfiança tem lugar marcado no vaivém dos transportes públicos. “Já nos vêem de manhã, com frio e encapuzados, e não sentam ao pé de nós. Ficam-nos a olhar…o único lugar vago é ao teu lado, não estão a sentar porquê? Ficam já a pensar que és bandido, que estás ali para roubar ou algo do género”.

As suspeitas também se colam ao currículo, onde a morada se lê como sinónimo das piores referências. Primeiro na escola: “Chegas à sala de aula, podes ser a melhor pessoa do mundo, mas por seres daquele sítio, o professor pode te afastar, ou dizer que és ignorante porque moras ali”. A sina repete-se no mercado de emprego: “Vamos a um trabalho, dizemos que somos da Zona J, esquece, não temos oportunidade”.

O mesmo olhar acusador que veda oportunidades de estudo e saídas profissionais – e com elas, opções de vida – inviabiliza um direito aparentemente corriqueiro: o de receber uma pizza à porta de casa. “Têm de ir buscar na esquadra”, informa a operadora de serviço.

A cada testemunho extraído do filme colectivo “Chelas nha kau” (“Chelas meu lugar”), recém-estreado no Doclisboa e até aqui representado pela voz de Sandro Santos, denunciam-se velhas narrativas de exclusão.

“Não é por seres dali que não tens talento. Não é por seres dali que não serves para nada”, sublinha Sandro, um dos 40 membros do Bataclan 1950, grupo que transporta na identidade o código postal da sua zona, e assina este documentário com a cooperativa Bagabaga Studios.

Chelas City: o ritmo com quase 1,5 milhão de visualizações no YouTube

“O processo começou em 2016, com o projecto Dá-te ao Condado”, recua Sofia da Palma Rodrigues, da Bagabaga, lembrando que o ponto de partida para “Chelas nha kau” foi uma proposta para realizarem um ateliê multimédia com os jovens do bairro. 

“Havia um pressuposto que era fazer um documentário sobre o projecto que estava a ser financiado, mas rapidamente conversámos com a pessoa que nos convidou, e explicámos que seria interessante entender o que o grupo queria fazer”, acrescenta Ricardo Venâncio Lopes.

“Rapidamente mudámos todos os planos, e percebemos que aquilo que tinha de ser feito era o videoclipe de uma música que já tinham escrito”, retoma Sofia.

Nascia assim a identidade audiovisual do rap “Chelas City”, composto pelo grupo de jovens Bataclan 1950, moradores no bairro do Condado, mais conhecido como Zona J.

Desde Maio de 2017 no YouTube, o tema soma cerca de 1 milhão e meio de visualizações, e marca as batidas do “Chelas nha kau”.

“Com o videoclipe já feito, começámos a pensar: e agora pessoal, o que é que vamos fazer?”.

A pergunta, lançada pela equipa Bagabaga, depressa deu lugar a novos planos de gravações. “Eles é que disseram: ‘Nós gostávamos de fazer um filme sobre o que é ser jovem na Zona J’”.

Um documentário a várias vozes, sem filtros de intermediação

Na primeira pessoa, a várias vozes e sem filtros de intermediação, o Bataclan 1950 apresenta-se, e desafia fronteiras carregadas de preconceito e discriminação.

“Dizes que Chelas é isto, dizes que Chelas é aquilo… Cala a boca, estás a falar à toa”, introduz uma das rimas que sonorizam o documentário, filmado entre 2016 e 2018.

“A maioria das imagens foram recolhidas por telemóveis e uma pequena máquina de filmar que existia no projecto. Por isso, este documentário é sobretudo deles. Nós entrámos numa fase final, já para editar”, realça Luciana Maruta, o terceiro elemento Bagabaga que se junta à videochamada com o Afrolink, numa conversa que também inclui o Batclan 1950.

“Se calhar, nunca pensámos que isto ia chegar onde chegou. O mérito não é só nosso, mas das pessoas que acreditaram em nós. No fundo, temos de agradecer a essas pessoas que confiaram e vieram até à zona perder um pouco desses receios…”, destaca BamBam, do Bataclan, reforçando: “Os bagabaga sempre nos disseram que a gente andava a filmar boas coisas”.

Sem guião, mas com uma ideia bem clara das vozes que queriam ouvir, o grupo de amigos desafiou rappers da Zona J, mães e jovens do bairro a darem o seu testemunho para a câmara. O ‘casting’ previa ainda uma presença policial, mas, apesar de inúmeras tentativas de aproximação, os pedidos de diálogo foram repetidamente ignorados.

Relatos de discriminação e falta de cooperação policial

O desdém, assinala Sandro, está alinhado com o tratamento discriminatório que os moradores de Chelas recebem das forças de segurança, estejam onde estiveram.

Isso mesmo demonstra um episódio vivido no Carnaval de Torres Vedras. “Lá para as três, quatro da manhã, estávamos a bazar, e, de repente, houve uma escolta policial. Mal os polícias começaram a entender de onde é que a gente era, as perguntas foram: ‘O que vieram aqui fazer? Vieram roubar? Vieram desmontar um carro, ou roubar as pessoas?”

A avaliar pela interpelação policial, aproveitar a folia carnavalesca é um direito que não está consagrado aos cidadãos com morada em Chelas.

“Aí está o rótulo que a gente diz”, reforça Sandro.

A história de Torres não é contada no “Chelas nha kau”, mas os excessos dos agentes sobressaem noutras situações.

“Por exemplo, nós estávamos aqui numa festa, até mandarem vir acabar com a festa e depois começarem a bater nos rapazes”, ouve-se no documentário, em que uma das mães do bairro partilha um caso de violência policial.

“A minha filha assistiu àquilo, [estava] a gritar aos berros. Desde aquele dia ela detesta os polícias, acha que são maus”.

Apesar dos esforços de explicar à criança que nem todos os agentes fazem mal o seu trabalho, o trauma continua presente. “Agora ela vai crescer com um ver diferente”.

De dentro para fora, sempre em diálogo

É esse olhar distintivo, produzido a partir das vivências do bairro, que dá ao documentário “Chelas nha kau” uma assinatura única.

“Nenhum de nós, Bagabaga, conseguiria fazê-lo sem o trabalho destes jovens. Só eles podem mostrar o que sentem em Chelas, as experiências que vivem, as dificuldades, os momentos por que passam, a forma como convivem e como interagem, o espírito de comunidade”, realça Luciana, acrescentando que ninguém está imune a preconceitos.

“Todos temos as nossas ideias preconcebidas e, portanto, quando nos aproximamos dos outros levamos isso na bagagem”.

Produzido à prova de enviesamentos exteriores, o filme projecta “um discurso que vem de dentro para fora, e não de fora para dentro, estereotipado, como estamos habituados a ver”, reitera Sofia, salientando a importância de construirmos pontes de entendimento para derrubarmos muros de exclusão.

Na prática, porém, a intervenção nos territórios discriminados e racializados tende a fazer-se sem espaço para o diálogo, critica Ricardo.

“Os projectos de intervenção social nos bairros ou nas comunidades partem do pressuposto que as pessoas têm de estar dispostas a participar, quando o que deve haver é uma comunhão entre aquilo que se pretende fazer, porque está no projecto, e aquilo que a população quer fazer”.

Desse encontro de vontades fez-se “Chelas nha kau”.

Sem tempo para amadurecer o projecto

“Foi todo um processo em que a equipa Bagabaga teve de estabelecer uma relação com os jovens”, destaca Elsa Monteiro, que integrou a equipa do Dá-te ao Condado, o projecto que serviu de incubação para o documentário, a partir do já mencionado ateliê multimédia.

“No Dá-te ao Condado, que era promovido pela associação Aguinenso, trabalhávamos com uma população dos 6 aos 30 anos, mas era mais difícil chegar à faixa etária partir dos 18”, reconhece Elsa, explicando que os planos audiovisuais foram traçados, desde o primeiro, momento, para atrair o público maior de idade.

Antes da entrada em cena da Bagabaga, o ateliê ainda esteve entregue a outra pessoa, recorda Elsa, destacando o ‘match’ que se produziu entre a cooperativa e o Bataclan 1950.

“Tentámos perceber qual seria a melhor forma de os agarrar, e como sabíamos que eles tinham este interesse pela música, começámos por aí”, diz Elsa, frisando que o “objectivo sempre foi dotar estes jovens de competências, para que depois pudessem realizar os seus videoclipes de forma autónoma”.

O trabalho de capacitação deveria ser amadurecido num estúdio montado para o efeito pela associação Aguinenso, mas, quase dois anos após o término do projecto Dá-te ao Condado, a inauguração continua adiada.

Aqui, como em tantas outras iniciativas de intervenção social, ficou demonstrado que o caminho do diálogo foi descurado, considera Ricardo.

“Os projectos não são pensados no tempo suficiente para que efectivamente se realizem as propostas que estão escritas no papel. Eu acho que é importante dizer isto: estes projetos são muito bonitos no papel, depois na prática são impossíveis de se materializarem no tempo que nos dão”.

Chelas de portas abertas

Sempre num corrupio contra o calendário, a equipa Bagabaga acabou por criar o seu próprio tempo, e espaço.

“Este filme acontece porque ninguém largou o osso e, mesmo sem financiamento, continuámos no bairro. Estivemos com os Bataclan a concretizar algumas das entrevistas, a visionar imagens, e também em trabalho colectivo de discussão”, resume Luciana.

Tudo somado, em horas de trabalho, equipamento, e dedicação, os custos de produção ascendem a 20 mil euros, mais do dobro do valor atribuído, fixado nos 8 mil euros.

Sem este investimento, reconhecem todos, “Chelas nha kau” não seria possível.

“Podem ver que a porta aqui esteve sempre aberta. Tanto que o mal parece que vem de fora para dentro, e não de dentro para fora”, nota BamBam.

As distorções, amplificados por coberturas noticiosas enviesadas, já associaram o Bataclan 1950 à criminalidade violenta, rótulo que o grupo faz questão de descolar.

“Ao todo, somos uns 40. Houve membros nossos, sim, envolvidos num assalto, mas não foi o Bataclan inteiro”, assinala Sandro, dando voz a um sentimento de injustiça generalizado.

“Nenhuma das pessoas envolvidas nessa situação está no videoclipe ‘Chelas City’, só que a notícia passou na televisão com o vídeo. É triste, porque o primeiro elemento que está a cantar no videoclipe até estava hospitalizado na altura”, continua BamBam.

“Ele estava a explicar às enfermeiras, a dizer, olha este aqui é o meu grupo e passados uns minutos está a dar essa notícia a difamar. Ele sabe que é mentira, mas as outras pessoas que estão a ver não conhecem. Vão pensar que é verdade”.

Confrontados com essa e tantas outras narrativas de exclusão, os protagonistas de “Chelas nha kau” tomam a palavra, e estabelecem as suas próprias fronteiras de afirmação: “Chelas City é a capital de Lisboa”. E está à vista de um grande ecrã!

 

Siga as próximas cenas de “Chelas nha kau” ;

Acompanhe o trabalho da cooperativa Bagabaga ;

E assista ao trailer do documentário !