COPOD-19: À escuta de uma identidade cabo-verdiana em construção

De férias em Cabo Verde, antes de Portugal mergulhar no confinamento, Bárbara Wahnon viu a viagem de 20 dias transformar-se numa estada de meses. Mas, ao contrário de tantos outros portugueses retidos além-fronteiras pela pandemia, Bárbara deixou-se estar. Afinal, conta, partiu em busca de parte da sua identidade, aventura parcialmente registada no podcast COPOD-19.
por Paula Cardoso

Portugal imprimiu-lhe a nacionalidade, a Guiné-Bissau e Cabo Verde fincaram-lhe as raízes maternas e paternas, mas, há muito que a identidade de Bárbara Wahnon não se compadece com limites geográficos.

“Lembro-me de ter chegado aos 16 anos, de ter ganho consciência de cor, de classe e de género, e de ter ficado meio abananada com tudo”, conta, à distância de uma videochamada.

O despertar adolescente para um mundo de desigualdades sacudiu fronteiras que pareciam invioláveis. “Antes, pensava: ‘O meu cartão de cidadão diz que sou portuguesa, falo português, os meus amigos são portugueses, mas…”.

Nas reticências cabem inúmeros estranhamentos do quotidiano.

“Comecei a olhar para determinadas acções de perspectivas diferentes, comecei a ter outro entendimento sobre certos comportamentos dos outros para comigo. Por exemplo, apercebi-me de uma dualidade de tratamento nas aulas em relação a mim e certos colegas, mas na altura não percebia porquê”.

 

Hoje, com 32 anos e uma licenciatura em Relações Internacionais, Bárbara arrisca a compreensão que a vivência pessoal lhe trouxe.

“Acredito que em Portugal existe um racismo institucional, e que há pessoas em negação. Com isso não quero dizer que todas as pessoas em Portugal têm atitudes racistas, ou propositadamente racistas, ou com o intuito de te fazerem sentir mal. Não é de todo disso”, esclarece, sublinhando a complexidade e sensibilidade que envolve este tema.

“Penso que ninguém estava preparado para lidar com isto. Ninguém pensou no pós-guerra colonial, no pós-libertação… tudo isto são impactos que afectam a identidade dos afrodescendentes. Acho que no presente ninguém tem culpa, simplesmente a História tem um peso”, observa, enquanto resgata a sua própria estória.

Cabo Verde é a viagem de uma vida

“Já estive na Ilha da Madeira, em algumas ilhas dos Açores, Espanha, Irlanda, Reino Unido, França, Hungria, Sérvia, Montenegro, China, Índia, Guiné-Bissau…. mas nenhuma destas viagens se equipara à viagem que estou a fazer à Ilha da Boa Vista em Cabo Verde – esta é a viagem de uma vida”, explica no segundo de cinco episódios do COPOD-19, podcast que criou para entreter a quarentena.

Apesar de sempre se ter sentido portuguesa (com ou sem estranhamentos do quotidiano), Bárbara sublinha: “Saber de onde viemos ajuda-nos a saber para onde ir”.

Por isso, durante anos foi construindo, na sua mente, uma rota cabo-verdiana, finalmente concretizada.

“A minha vinda para cá está muito relacionada com essa procura identitária”.

 

Educada em Lisboa pela avó paterna, que faleceu no ano passado e era natural de Cabo Verde, Bárbara habituou-se, desde cedo, a ouvir histórias sobre as origens cabo-verdianas.

A começar pelo nome próprio, herança da bisavó Maria Barba, com quem também partilha a veia musical.

“Desde que me lembro de existir que sempre cantei. Acho que não consigo viver sem música”, conta esta integrante do Gospel Collective, cada vez mais consciente da força do seu legado.

“A minha avó apenas dizia: ‘A tua bisavó era cantadeira de morna’. Dizia isso de uma forma tão simples que nunca imaginei que, aqui na Boa Vista, toda a gente a conhecesse. Por exemplo, se me apresentam a alguém e dizem que sou bisneta de Nha Maria Barba, toda a gente sabe quem é”.

Bisneta da primeira embaixadora da morna

Embora Bárbara já conhecesse um episódio indicador da importância histórica da bisavó – apontada como a primeira embaixadora da morna, género que internacionalizou ao cantar, em 1934, no Porto, na 1.ª exposição colonial portuguesa –, a dimensão do contributo ancestral só ganhou peso e medida no ‘arquipélago da Morabeza’.

“Ao terceiro dia aqui aconteceu uma coisa incrível. Um senhor que sabe a história toda da Maria Barba tocou-me à campainha. Ele está muito empenhado em ilustrar a relevância que a Ilha da Boa Vista teve para a construção da morna enquanto património imaterial da humanidade, e queria mais informações sobre a minha bisavó. Mas quem tinha toda a informação era a minha avó”.

Já sem o apoio dessa memória familiar, Bárbara dedica-se a construir as suas próprias lembranças.

 

“Em Portugal, mesmo que tentasse cantar, como nem sequer falava crioulo, não conseguia transmitir o sentimento associado a cantar uma morna. Cheguei a tentar, mas não gostava de me ouvir cantar. Agora, até estou a aprender mornas”, revela, firme na busca pelas raízes.

“Das primeiras coisas que fiz, quando cheguei à Boa Vista, foi tentar conhecer músicos locais, pessoas que me conseguissem orientar e guiar nessa procura musical”.

O processo acabou por ser atravessado pela pandemia, que transformou as férias de 20 dias numa temporada já contabilizada em mais de três meses, divididos sobretudo entre confinamento e teletrabalho, com encontros familiares pelo meio.

“Logo no segundo dia de viagem conheci uma familiar, numa ida à Câmara Municipal para tratar de burocracias. É uma espécie de tia, porque o avô dela era irmão da minha bisavó, e, se não fosse ela, a minha estadia aqui seria muito mais solitária. Já me apresentou a outros familiares e não me deixa passar mal”.

A libertação pelo gospel

O suporte encontrado revela outra dimensão da construção identitária.

“Não sei se posso falar em espírito africano, mas, pelo menos aqui em Cabo Verde, sinto muito presente isso de darmos a mão uns aos outros. Hoje dou eu, amanhã posso ser eu a receber”.

Em aberto está também o futuro profissional.

“Não sei se um dia vou viver única e exclusivamente da música, mas não me parece”, adianta Bárbara, que aos 12 anos chegou a exibir os dotes vocais no programa televisivo “Os principais”.

Duas décadas depois, musicalmente marcadas pela criação de bandas, concertos em bares e presença em festivais – incluindo a participação no último Festival da Canção, com o Gospel Collective –, o carácter multifacetado desvia-a de voos profissionalizantes.

 

“A música acompanha-me desde sempre, mas adoro fazer várias coisas diferentes. O meu espírito criativo flui”, nota, atenta a novas oportunidades.

“Agora estou em Cabo Verde a tentar perceber de que forma é que posso estar cá, como é que posso investir aqui na área do turismo cultural. Estou a fazer esta pesquisa, à procura de financiamentos, a tentar estruturar algumas ideias”, antecipa.

Até lá, Bárbara concilia o trabalho – agora à distância – como responsável de Marketing na clínica de transplantes capilares Replace, com o gospel, também ele uma expressão da sua identidade.

“O povo africano sempre foi um povo sofrido, e o gospel vem como uma forma de aliviar a dor sentida. Para mim é um dois em um: ligar o meu gosto de cantar a uma libertação, trazendo mensagens de alegria e de força a quem ouve, e a mim também. Como uma terapia”. Num profundo mergulho ancestral.