Cronologia de uma nota envenenada: a crueza dos factos no cerco a Van Dunem

As ruidosas exigências de demissão dirigidas à Ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, a partir de uma nota enviada ao secretário-geral do Conselho da União Europeia, Jeppe Tranholm-Mikkelsen, sobre a indicação de José Guerra para procurador europeu, partem de uma série de equívocos. Mas, em vez de os vermos esclarecidos, com factos, vemo-los enterrados em títulos e comentários inflamatórios. E se nos cingirmos aos factos, em vez de nos focarmos em Francisca Van Dunem? Polémica de uma nota, analisada cronológica e factualmente.

por Paula Cardoso

Primeiro ponto: Uma coisa é um currículo, outra é uma nota curricular. Escrever que o currículo do procurador José Guerra remetido pelo Governo à União Europeia continha dados falsos é mentira. Ou, para quem prefere subtilizas de linguagem: é manifestamente exagerado. 

“O curriculum vitae do candidato proposto, que consta do processo submetido ao Conselho da União Europeia, não contém qualquer incorrecção”, garantiu esta segunda-feira, 04, o primeiro-ministro António Costa. Até ver, ninguém apresentou provas que desmintam esta afirmação.

Logo, ao contrário do ruído mediático gerado – eficiente em causar indignação generalizada contra a ‘chico-espertice crónica dos corruptos que estão no poder’ –, nem José Guerra apresentou um currículo adulterado, nem o Executivo o fez.

O problema está desde o primeiro minuto, numa nota produzida pela Direcção Geral da Política de Justiça e comunicada à Reper – Representação Permanente Portuguesa.

Segundo ponto: Currículo ou nota curricular, pouco importa. O que interessa considerar é que o Governo enviou informações falsas sobre o percurso profissional de José Guerra.

Sim, o erro existiu, foi publicamente reconhecido pela ministra da Justiça, e conduziu ao pedido demissão de Miguel Romão, até ontem director-geral da Política da Justiça. Porquê Miguel Romão? Porque a nota foi comprovadamente emitida pela sua Direcção. Segundo Romão, a mesma “foi preparada na sequência de instruções recebidas, e o seu conteúdo integral era do conhecimento do Gabinete da senhora Ministra da Justiça”.

Mas, o que significa ser do “conhecimento do Gabinete da senhora ministra da Justiça?”. Todas as notas que passam pelo Gabinete da senhora ministra da Justiça são lidas pela própria? Esta tinha de o ser por alguma particularidade que desconhecemos?

À RTP, a titular da pasta da Justiça assumiu o “erro” e lembrou que “os serviços mandam dezenas de notas”. Já o primeiro-ministro, António Costa, falou em “lapsos”, estabelecendo uma cadeia de responsabilidade.

“Os lapsos tiveram origem numa nota produzida na Direçcão Geral de Política de Justiça e comunicada à Reper (Representação Permanente Portuguesa), e com mero conhecimento para arquivo ao gabinete da ministra da Justiça”.

Pouco importa, percebe-se, porque, aparentemente, todos conhecem os procedimentos do Ministério da Justiça e, à luz dos mesmos, a ministra cometeu uma falha grave ao ponto de não lhe restar saída a não ser a demissão.

Terceiro ponto: É no mínimo suspeito que o Governo tenha rejeitado a recomendação produzida por um comité de peritos europeus, optado por outro nome para procurador europeu e, ainda por cima, que tenha comunicado esse nome acompanhado de informações falsas.

Proposta de reflexão que, para mim, importa: como é que José Guerra foi escolhido? Porque é que o Governo o indicou, decidindo em sentido contrário àquele que foi recomendado por um comité de especialistas europeus?

As explicações são de leitura algo soporífera e, talvez por isso, menos apelativas do que as especulações.

Antes de mais, devo confessar que com tanto barulho à volta do nome Francisca Van Dunem, imaginei, num primeiro momento, que a indicação do procurador europeu tivesse partido do Ministério da Justiça. Aprendi que, afinal, partiu dos pares de José Guerra.

Como? Tentarei resumir cronológica e factualmente, apoiando-me no que tem sido noticiado pelos media e divulgado pelo Governo.

 Em Outubro de 2017, foi publicado no Jornal Oficial da União  o Regulamento (UE) do Conselho 2017/1939, que “dá execução a uma cooperação reforçada para a instituição da Procuradoria Europeia”. Podemos ler aqui tudo o que respeita a esta estrutura.

 

Tendo em conta a novidade, o Governo submeteu à Assembleia da República, uma proposta de Lei – a qual veio a ser aprovada dando origem à Lei n.º 112/2019, de 10 de Setembro – que atribui competência aos conselhos superiores da Magistratura e do Ministério Público para a selecção dos candidatos a apresentar pelo Estado português, com vista a nomeação para Procurador Europeu e dos Procuradores Europeus Delegados.

 

Os poderes conferidos aos conselhos superiores da Magistratura e do Ministério Público, explica o Governo, visam “assegurar a efectividade da independência e autonomia das magistraturas, em questões de natureza criminal, contrariando qualquer tentação de controle político”.

 

Em Janeiro de 2020,  “antecipando os termos da Lei que se encontrava ainda em fase de trabalhos preparatórios, o Governo anunciou a abertura do processo de candidatura para a selecção de candidatos a designar pelo Estado Português, para selecção e nomeação pelo Conselho da União Europeia para o cargo de Procurador Europeu, publicitando-a no jornal oficial – Cfr., DR 2ª série, n.º 1 de 2 de Janeiro”.

 

O Conselho Superior da Magistratura indicou um único candidato.

 

O Conselho Superior do Ministério Público apontou três candidatos, anunciados com a seguinte hierarquização: José Eduardo Moreira Alves Guerra (95 pontos); João Santos (92 pontos) e Ana Carla Mendes de Almeida (81 pontos);

 

Os quatro foram ouvidos em audição na Assembleia da República (AR).

 

O Parlamento emitiu parecer favorável à indicação dos quatro candidatos, ainda que sinalizando a experiência de trabalho em ambiente internacional dos candidatos José Eduardo Moreira Alves Guerra e Ana Carla Mendes de Almeida (parecer da Comissão dos Assuntos Europeus da AR).

 

Como cada um desses conselhos deveria ter indicado três candidatos (conforme Lei n.º 112/2019), mas apenas o Conselho Superior do Ministério Público o fez, o Governo optou por prosseguir o processo com a suas indicações, excluindo o quarto elemento (juiz de direito que exerce desde 2014 funções de natureza mais administrativa e gestionária, como presidente de uma comarca).

 

 Nos termos do que dispõe o regulamento europeu, as escolhas seguiram para a Europa, e os três candidatos foram sujeitos ao parecer do painel de selecção previsto para o efeito, que os alinhou por ordem de preferência:  Ana Carla Mendes de Almeida; José Eduardo Moreira Alves Guerra e João dos Santos.

 

Essa preferência foi comunicada ao Governo, pelos serviços da Procuradoria Europeia, lembrando-se o seu carácter não vinculativo.  “Por favor note que de acordo com o artigo VII.2 da Decisão de Implementação do Conselho 2018/1696, o ranking indica a ordem de preferência do painel e não é vinculativo”.

 

Face ao desencontro de escolhas, o Estado português recorreu ao Conselho da União Europeia – órgão competente para a decisão final –, o que desencadeou uma avaliação autónoma do 1.º e 2.º candidatos hierarquizados pelo painel de selecção.

 

No tira-teimas, o Governo foi chamado a exprimir formalmente a sua preferência, e fê-lo através da tal nota emitida pela Direcção-Geral de Política de Justiça.

 

Assume-se que a nota foi elaborada por indicação da Ministra da Justiça, “que transmitiu orientações no sentido de ser apontada preferência pelo candidato colocado em primeiro lugar na hierarquização feita pelo Conselho Superior do Ministério Público, invocando a maior adequação do seu curriculum e a circunstância de não se identificar na decisão do painel razões que levassem a contrariar a avaliação feita pelo Conselho Superior do Ministério Público, órgão nacional independente e com larga experiência na avaliação e hierarquização de magistrados”.

 

A nota, “pedida com menção de urgência, foi elaborada na DGPJ cujo Gabinete de Relações Internacionais dá apoio directo à Ministra da Justiça, e enviada à Representação de Portugal junto da União Europeia, tendo sido dado conhecimento do envio ao gabinete ministerial.

 

O Governo reconhece, a partir da polémica entretanto criada, que ocorreram dois lapsos: “A utilização do tratamento “Procurador-Geral Adjunto José Eduardo Guerra” (é ‘apenas’ Procurador da República); e a indicação de liderou a investigação do processo da UGT, quando esteve ‘apenas’ na acusação.

 

Ponto final: o Chefe do Executivo reafirmou, ontem, “total confiança política” na ministra da Justiça para o exercício de funções”. Mas, pelo caminho, Miguel Romão o ex-director-geral da Política da Justiça, reviu as suas declarações, apontando o dedo directamente a Francisca Van Dunem.

Fê-lo, garante o Ministério da Justiça, à margem da lei, publicando uma nota institucional quando já não estava em funções. Não apresentou factos novos, mas deixou o seu rastro de especulação. Nós escolhemos os factos.