Da alucinação à cegueira cromática dos portugueses – os “Brancos honorários”

Fiel à ideologia de ódio que professa, enraizada em fantasias de supremacismo branco, Diogo Pacheco Amorim, dirigente e deputado do partido da extrema-direita portuguesa, declarou à Rádio Observador que os portugueses “de origem” são brancos. “A nossa cor de origem é a cor branca, todos nós sabemos” e “a nossa raça é a raça caucasiana”, disse, escancarando, uma vez mais, o racismo que lhe corrói a humanidade. As afirmações do vice-presidente do Chega dão o mote para o artigo que se segue, da autoria de Luísa Semedo, e para o tema em discussão hoje, na segunda parte d’ O Lado Negro da Força.

Activista feminista e anti-racista, Luísa Semedo  é doutorada em Filosofia pela Universidade Paris-Sorbonne, na especialidade Filosofia Política e Ética, lecciona a cadeira de “Criação e Gestão de Associações e ONGs” na Universidade Clermont-Auvergne e é docente de Filosofia no liceu.

Luísa Semedo

por Luísa Semedo

Prefiro a alucinação cromática à cegueira cromática. Os padecentes da primeira maleita ajudam-nos a demonstrar o que é o racismo, os da segunda, ao declamar que as cores não existem, que não as veem, bla bla bla, são para nós um empecilho de alto porte.

Nos mimos racistas que recebo em mensagens privadas, de vez em quando lá vem um alucinado cromático muito enervadito dizer-me que os portugueses são brancos e europeus.

Não sei porque me dizem isso, nem qual é o objetivo, mas constato que é, para eles, muito importante partilhar essa informação comigo. Um dia pus-me à conversa com um. Confesso que tive pena. Eu sei, eu sei, não se fala com racistas, mas não sei porquê, deu-me um acesso de compaixão, e achei por bem avisá-lo de que era um alucinado. Fiz a coisa com uma certa delicadeza. E ele entendeu a intenção humanitária. A conversa tornou-se amena. Ao lê-lo compreendi algo que mudou definitivamente a minha visão do racismo. Mas disso falarei, talvez, noutro momento. Na verdade, as suas declarações sobre a sua “identidade racial” eram uma tentativa de se convencer a si próprio, que oh horror, não poderia ter nada de africano. A um dado momento ele quis continuar a conversar de forma mais amigável, mas eu não consegui, de repente a compaixão passou a náusea. Parei a conversa.

Antes disso expliquei-lhe que a raça é uma construção altamente subjetiva, que os portugueses não eram considerados brancos em certos países do mundo, como nos EUA, ou ainda pelos neonazis nórdicos que gozam com o nosso neonazi doméstico, e que mesmo em França existe uma racialização negativa de uma parte dos portugueses, ora porque parecem magrebinos, ora porque os estereótipos sobre o seu corpo fazem parte da cultura popular, assim como a correlação entre as suas atividades e a sua origem, e quando ainda não tinham a nacionalidade europeia e viviam nos bairros de lata, eram descritos como sujos, portadores de doenças, mal-educados, etc. Quando os portugueses subiam de estatuto, eram considerados como explica Margon Delon “Brancos honorários”, ou seja, mais brancos que negros e árabes, mas não tão brancos como os franceses. O que lhes permitiu não sofrer de racismo de forma plena.

Falei-lhe também da racialização de pessoas ciganas e judias, independentemente do fator cor. Falei-lhe também da presença árabe durante séculos em Portugal, da mistura com pessoas negras, etc., e que não existe um português de “raça pura”.

Pacheco de Amorim, como alucinado cromático que é, com as suas declarações torna evidente esta construção racista. Ele e o “meu amigo” racializaram-se como brancos porque acham que é valorizador, enquanto excluem outros de ser portugueses. Apesar de o negarem estabelecem uma hierarquia evidente, e o medo da “substituição demográfica” do programa do Chega é também revelador desse racismo e da defesa da supremacia branca e dos seus supostos valores. Esta racialização positiva não existe sem a racialização negativa de outros.

Seguindo a reflexão do James Baldwin, o branco inventou o negro porque precisa dele para se valorizar, para construir a sua própria identidade. A historiadora Aurélia Michel também explica esta construção, o momento em que definir alguém como cristão ou depois espanhol ou português não era suficiente para se demarcar de negros, índios e sobretudo dos “mestiços” que começavam a causar problema, inclusive em termos de possíveis direitos.

Quem padece de cegueira cromática acaba por negar toda esta construção social, e ao não ver cores, também não vê o racismo, os seus mecanismos e os seus efeitos.

Já o disse anteriormente, em Portugal tornamo-nos verdadeiramente negros no primeiro dia em que nos mandam para a nossa terra. Não é a diferença de melanina que cria a raça como fator hierarquizante, mas a cabeça dos alucinados, e esta criação tem uma existência social real, que os padecentes da cegueira cromática queiram ou não.

[As fotos que acompanham o artigo foram tiradas de grupos franceses “humorísticos” sobre os Portugueses]

 

As reflexões prosseguem mais logo n’ O Lado Negro da Força, que pode acompanhar no Facebook e no YouTube, a partir das 21h.