Da Raiz ao Movimento, todas as danças vão dar a África

Enfermeira e formadora de dança africana, Marisa Paulo divide-se entre a prestação de cuidados pediátricos num hospital, e o ensino de gingados ancestrais, oriundos sobretudo do antigo reino Mandinga. Para aprender no Workshop “Da Raiz ao Movimento”, desenvolvido a partir de viagens de investigação cultural por África. Agora com um novo roteiro à vista: encontrar no que se dança na diáspora, passos do ‘continente-berço’ da humanidade.

por Paula Cardoso

O corpo segue os ritmos, num movimento que harmoniza cabeça, tronco e membros às sonoridades. Gestos e passos vigorosos geram vida numa coreografia, que nos habituamos a situar no palco das danças tradicionais africanas.

Mas, o que há de África em toda essa fisicalidade?

De viagem em destino, numa rota iniciada em 2013, no Senegal, Marisa Paulo encontra respostas.

“A partir daí foi ‘UAU’! Não era nada do que eu estava à espera: a energia, o sentimento de estar naquela terra com aquelas pessoas”.

Em território senegalês, inserida numa excursão da associação cultural e juvenil Batoto Yetu, Marisa viveu o primeiro contato directo com a cultura mandinga.

“De repente, mais do que uma procura, meio que perdida, meio que desorganizada”, por caminhos de resgate do legado da dança africana, a então bailariana sentiu que começava a nascer, no seu percurso,“algo mais estruturado”.

A busca da herança africana

Sete anos depois dessa viagem de imersão, a coreógrafa e professora especializa-se nos voos de conhecimento e reconhecimento de uma ancestralidade que também é a sua.

Nascida em Angola há 32 anos, Marisa chegou a Portugal ainda bebé, e, já em idade escolar, descobriu os movimentos do grupo Batoto Yetu e, com eles, expandiu os horizontes africanos.

“Na infância, o meu contacto com África, para além de acontecer dentro de casa, era na escola com os meus colegas. Mas, a partir dos nove anos, comecei na dança africana através da Associação Batoto Yetu. E foi a partir daí que se deu a ligação com um grupo africano maior”.

A experiência, facilitada a partir da sugestão de uma senhora conhecida – de quem a memória não gravou muito mais –, durou cerca de quatro anos, foi interrompida por uma incursão no Hip-Hop e, já depois da licenciatura em Enfermagem, ganhou um novo rumo.

“Sentia que faltava qualquer coisa, de algum modo sentia necessidade de me reconectar ou de me conectar com a minha herança africana, de perceber de onde é que eu vinha. Então, comecei a investigar”.

A busca identitária reaproximou Marisa do Batoto Yetu.

“Voltei ao grupo quando até já estava a trabalhar no hospital, porque na altura organizaram uma formação de dança com um bailarino da Guiné-Conacri, que vive na Alemanha”, recorda.

Férias de conhecimento

De formanda, em 2012, a formadora em dança africana, em 2015, a também enfermeira não hesita em converter as férias em laboratórios de cultura.

“Há cerca de três ou quatro anos, mais ou menos, que as minhas férias não são só de lazer. Eu tiro férias para aprender e explorar mais este mundo da dança e para trabalhar, seja a dar formação fora de Portugal, seja a fazer viagens de investigação”.

O roteiro internacional inclui, além da deslocação de estreia ao Senegal, uma série de aprendizagens com bailarinos africanos de renome radicados na Europa, e um voo até à Guiné-Conacri.

“O grande objectivo nesta viagem, de 2018 à Guiné, foi explorar os ritmos tradicionais”, conta Marisa, nessa altura já ligada à BangBang Percussões.

A investigação, fixada sobretudo no meio rural, alargou o repertório dançável, com a doundoun dance a sobressair num desfile de sonoridades onde os tambores ressoam tradições ancestrais.

Da Raiz ao Movimento

As descobertas “na origem”, conforme Marisa descreve o viveiro da cultura mandinga – formado, além do Senegal e da Guiné-Conacri, por países como o Mali e a Gâmbia –, ganham expressão na diáspora, sobretudo através de ciclos de formação.

“Da Raiz ao Movimento”, que, este mês avançou com mais uma edição, “tem como objectivo abordar, numa visão contemporânea, aspectos técnicos, artísticos, históricos e sociais da dança africana”, antecipa o plano de actividades.

“No final, é esperado que cada um consiga desenvolver ferramentas para desconstruir o corpo enquanto sistema, de modo a explorar o movimento e a sua relação com o “eu individual” e o “eu colectivo””.

A esta proposta de trabalho, conduzida por Marisa Paulo, juntam-se outras abordagens, também com a sua assinatura e da BangBang Percussões, num universo onde movimentos de corpo e de tambores se fundem.

É o caso do encontro anual Kolafölö, e da Aldeia Djembe Camp, ambos concretizados em vários dias de programação.

Por cumprir está agora “o objectivo de perceber de que modo a dança africana influencia as danças na diáspora”, traçado por Marisa, entre pausas de turnos de enfermagem, vividos num serviço de pediatria.

“Quer queiramos quer não, África é o berço da humanidade, e em cada movimento migratório o povo africano levou consigo as suas culturas, que, pelas realidades impostas nos locais de destino, tiveram de se aculturar de algum modo, para que se pudessem continuar a expressar”.

“Em que medida esse cruzamento de influências se manifesta no estilo house, por exemplo? Porque é que os passos são assim? De onde vieram?”.

A investigação que, este ano, deveria ter regressado ao Senegal, promete regressar com o levantar das restrições da pandemia. Até lá, as danças prosseguem “Da Raiz ao Movimento”.