De Bissau partiu, e a Bissau regressará, num voo pela igualdade de género

Nascida em Bissau há 27 anos, Libânia Fernandes cresceu entre o movimento da capital guineense e o sossego da Ilha de Bolama, onde estão mergulhadas as origens familiares. Desde 2012 fora do país, rumou ao Brasil para se graduar em Letras, grau académico que agora complementa, em Portugal, com o mestrado em Estudos Sobre as Mulheres. Na rota de formação, segue-se outro destino europeu, traçado para melhorar o inglês, e fortalecer os planos de regresso à Guiné. Ainda sem data, mas com uma missão: promover os direitos das mulheres.

Texto de Paula Cardoso
Fotos cedidas por Libânia Fernandes

Desistir dos estudos. Engravidar precocemente. Casar sem direito a escolha. Ceder a um destino de subjugação. A narrativa, vivida no feminino, foi testemunhada demasiadas vezes por Libânia Fernandes, ao longo de 19 anos de percurso escolar na Guiné-Bissau.

Mas, ao contrário de tantas colegas, Libânia, de 27 anos, sempre teve na escola um caminho de sentido obrigatório. “Graças a Deus, venho de uma família matriarcal”, exalta, enquanto percorre memórias de resistência materna.

Órfã de pai desde os três meses de idade, Libânia foi criada pela mãe, numa casa quase sem presença masculina – “Somos seis irmãs, e um irmão” – e onde estudar era regra sagrada. 

O ambiente de maioria feminina, dominante na infância e na adolescência, ganha agora, na fase adulta, contornos de uma missão para a vida.

“Quando acabar a minha formação, quero voltar para a Guiné e lutar pelos direitos das mulheres”, projecta Libânia, empenhada em promover a igualdade de género no país de origem.

A consciência feminista brasileira

O compromisso feminista, enraizado no exemplo materno, começou a delinear-se de forma mais consciente a partir dos estudos no Brasil.

Licenciada em Letras pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), Libânia viveu cinco anos no estado do Ceará, onde encontrou um mundo de reflexões sobre a condição da mulher.

“Envolvia-me muito nos movimentos feministas na UNILAB, e vi como o Brasil está muito avançado nestas discussões”.

A experiência, desbravada a partir uma bolsa obtida em 2012 – no âmbito de um acordo de cooperação entre os Estados brasileiro e guineense – despertou o interesse de Libânia para o aprofundamento da sua intervenção.

Desde o início de 2018 em Portugal, a activista prepara-se para o segundo ano do Mestrado de Estudos Sobre as Mulheres, que está a frequentar na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

O desencanto português

A escolha académica, embora completamente alinhada com os interesses e aspirações profissionais – “tenho o sonho de trabalhar na ONU Mulher, na Guiné-Bissau” –, acabou, contudo, por se revelar um tanto agridoce.

“Como vim do Brasil, onde o feminismo se discute segundo uma perspectiva de interseccionalidade, quando entrei no mestrado prestei atenção a todos os detalhes”.

Para começar, conta Libânia, a bibliografia está completamente esvaziada de autoras negras.

“Como aluna de um mestrado em Estudos sobre as Mulheres, que aborda as mulheres na sociedade e na cultura, comecei a questionar-me, logo nas primeiras aulas, de que mulheres estávamos a falar. Cheguei à conclusão de que são do Ocidente, de classe média-alta, e que não há qualquer diversidade”.

A ausência de referências africanas, latinas, asiáticas, entre tantas outras pertenças, depressa desviou a guineense das metas académicas.

“Tranquei a matrícula no final do primeiro semestre, mas retomei no ano passado, porque quero cumprir o meu objectivo. Sei que tenho de ir atrás das mulheres que me façam sentir representada. Tenho de ser eu a fazer essa procura individualmente”. 

A luta da mulher negra

Apesar do foco na busca pessoal, a estudante não deixa de se inquietar com o desinteresse dos professores por novas abordagens.

“Lembro-me de, no final do primeiro semestre, ter falado da Chimamanda [Adichie, feminista nigeriana de renome internacional], por causa de um trabalho que tinha de fazer, e a professora nem sequer ter reconhecido o nome. Fiquei indignada. A Chimamanda é bem conhecida, e até já veio a Portugal!”.

O episódio, embora tenha desencadeado a pausa curricular, também permitiu a Libânia reforçar a consciência sobre a importância de somar a sua voz à discussão feminista.

Além de ter regressado à faculdade, a guineense integra o Instituto da Mulher Negra em Portugal, colectivo que vai estrear, em Novembro, um documentário inédito no país.

A produção, intitulada “As vozes da Mulher Negra em Portugal”, resulta do trabalho de uma equipa 100% feminina e 100% negra, onde se inclui a assinatura de Libânia.

Veia empreendedora

Os créditos expandem o currículo da estudante à área cinematográfica, e comprovam a dimensão multifacetada do seu trabalho.

“Vejo-me como uma pessoa bem criativa. Penso nas coisas, projecto, e ponho em prática”, abrevia a também fotógrafa, fashionista e, acima de tudo, empreendedora.

A veia de fazedora permitiu-lhe deixar uma marca na UNILAB, que, sob sua iniciativa passou a organizar, em 2015, uma Semana de África.

“Apercebi-me que quando chegava o Dia de África, a 25 de Maio, as pessoas só se organizavam para ir às festas, para comemorar a data a comer e a beber. Na universidade não havia nada que levasse a uma reflexão académica sobre África. Aí, parei e disse: vou organizar um evento na faculdade”.

Num único dia, a ideia ganhou forma, e depois de ter sido apresentada a um professor não demorou até ser concretizada. “A universidade não só apoiou a ideia, como financiou a vinda de professores de fora do Estado e até de fora do país”, recorda Libânia.

O evento continuou depois da partida a guineense, que se tornou uma autêntica embaixadora da cultura africana na UNILAB.

A par da semana dedicada ao continente-berço da humanidade, a empreendedora colocou os panos africanos no top das tendências de moda. “Recebia as encomendas da Guiné, e depois vendia aos colegas e professores, numa altura em que ainda era novidade”.

Herança materna

Antes da incursão na moda, Libânia também se aventurou no mundo das extensões capilares, tal como os tecidos, enviados de Bissau.

“Não sou pessoa de ficar parada. Fui mudando de estratégia, porque depois apareciam outras pessoas a vender o mesmo. Mas procurei sempre ir buscar alguma coisa que tivesse impacto para os africanos, e não fosse muito acessível no Brasil”.

O olho para o negócio é indissociável da luta da mãe, que, além de ter feito questão de manter todos os filhos na escola, sempre desenrascou sustento para a família, a partir de um mercado paralelo à produção da castanha de caju. “Entre outras coisas, ela levava vinho de caju e trocava por arroz. Ia trabalhando com vendedora”.

É caso para perguntar: tal mãe, tal filha? Certo é que as escolhas de Libânia revelaram-se certeiras, e permitiram compor as poupanças estudantis, investidas numa paixão: as viagens.  

Rota internacional

Além de ter conhecido outros estados brasileiros, durante a temporada na UNILAB Libânia aproveitou para ganhar mundo.
A rota internacional incluiu França, Espanha e Estados Unidos, destinos de reencontros familiares.

A cada viagem, a guineense, que cresceu entre o movimento da capital guineense e o sossego da Ilha de Bolama, cumpre outra vocação: a fotografia.

“Sempre gostei da câmara. Quando era adolescente, ia aos estúdios, na Guiné, só para ser fotografada. É engraçado porque sempre tive o sonho de viajar e conhecer outras culturas, e isso para mim está ligado à fotografia”.

Autodidacta por excelência, Libânia junta às aprendizagens informais alguns workshops de curta duração, em fotografia e audiovisuais.

As lições aprimoram-se desde o ano passado com um incentivo à especialização: uma câmara profissional, recebida no último aniversário.

O presente, hoje apontado para a conclusão do mestrado, amanhã dirige o foco para o aperfeiçoamento linguístico.

“Quando terminar a minha formação em Portugal, quero ir para Inglaterra ou para a Irlanda para estudar Inglês, porque sei que vou precisar muito”, antecipa Libânia, igualmente determinada em aprender o francês. E, seja qual for o próximo destino, todos os caminhos apontam para o regresso à Guiné-Bissau. Por novos voos de realização feminina.