De escravizada a senhora dos milhões,
o feitiço da vida de Maria Ortega

“Um povo sem o conhecimento da sua história, origem e cultura é como uma árvore sem raízes”, escreveu o jamaicano Marcus Garvey, um dos ícones maiores do movimento pan-africano. Retomamos aqui o seu pensamento para enquadrar as linhas que se seguem, dando a conhecer, de forma sucinta, figuras e episódios que fazem parte do legado negro. Maria Ortega, uma das mulheres negras condenadas pelo Tribunal da Inquisição de Lisboa, ganhou fama – e fortuna – através da “grande mão” para unir homens e mulheres.

por Afrolink

Os clientes “eram tantos que se concentravam numa longa fila de espera à porta de sua casa”. Ex-mulher escravizada, Maria Ortega notabilizou-se na Lisboa seiscentista como “feiticeira de renome”, procurada por “portugueses ricos e socialmente de estatuto elevado”, capazes de pagar os “altos valores” que cobrava.

O pouco que sabemos da sua vida, aqui apresentada a partir da obra “Mulheres Africanas: O Discurso das Imagens (Séculos XV-XXI)”, da historiadora Isabel Castro Henriques, chega a partir dos arquivos do Tribunal da Inquisição de Lisboa.

Conforme assinalou Selma Pantoja, mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutorada em Sociologia pela Universidade de São Paulo, com pós-doutoramentos nos EUA, Portugal e Angola, “em sociedades nas quais escravos e mulheres em geral não deixaram um legado muito expressivo da visão deles mesmos e de seu mundo, documentos como os da Inquisição tornam-se fontes de grande valor para conhecer a sua auto-representação”.

 

Apesar de reconhecer que esses relatos incluem sempre “a mediação do escrivão”, a também professora, nota que os mesmos permitem “filtrar o registo da própria história do escravo”.

No 1.º Simpósio Internacional “O desafio da diferença: articulando género, raça e classe”, da Universidade Federal da Bahia, a especialista brasileira debruçou-se sobre “As Africanas na Rede da Inquisição” portuguesa.

Cinquenta milhões de condenação

Selma Pantoja analisou 45 processos do Tribunal da Inquisição de Lisboa, e, incidindo sobre os casos de 10 mulheres, destacou que Maria Ortega “foi a única que pagou as custas do processo”, indicador de “que tinha bens e certa situação financeira, numa sociedade em que as mulheres negras eram sempre de pobres a miseráveis”.

Segundo a também historiadora brasileira Daniela Buono Calainho, Maria Ortega “ensinava, em 1637, ‘desconjuros de palavras’ para unir homens e mulheres, gabando-se de ter ‘grande mão’ para essas tarefas”.

A arte, que lhe deu fama e fortuna, também ditou a sua condenação no Tribunal da Inquisição.

“Bernardo Correa, cantor da Capela Real, que a procurou para resolver um problema amoroso, pagando ‘cinquenta milhões’”, acabou por denunciá-la à Inquisição de Lisboa, “por não ter obtido os resultados esperados”, lê-se em “Mulheres Africanas: O Discurso das Imagens (Séculos XV-XXI)”.

Julgada por feitiçaria, Maria Ortega acabou açoitada, presa, e condenada ao degredo em Angola.

“No auto-da-fé confessou o crime”, assinala Isabel de Castro Henriques, acrescentando que, a pedido dos inquisidores, a acusada descreveu a figura do diabo: “Homem de estatura baixa, de barba e de cor da lua, e que os raios não deixavam que fosse noite”.