“De uma Belém a outra”, Mauricio Igor confronta um passado sangrento

Em exibição na plataforma online da Uncool Artists, a já premiada videoperformance “De uma Belém a outra”, do artista visual Mauricio Igor, confronta-nos com uma série de questionamentos históricos. Desde logo: “O que existe em comum entre Belém do Pará e a Belém Lusitana?”, e “porquê glorificar um passado de racismo e colonialismo?”. Estas e outras provocações cabem na obra audiovisual do paraense, construída para “promover uma conscientização de um passado que não deverá ser repetido”.

por Paula Cardoso

A travessia de Mauricio Igor, do Brasil para Portugal, embateu num encontro assustador com o “Padrão dos Descobrimentos”.

“Eu não tinha ideia da dimensão, e ainda que já soubesse da sua existência, através de uma brasileira que mora há anos em Lisboa, quando o vi fiquei assustado”, recorda o paraense, em declarações ao Afrolink.

Nascido e criado na cidade brasileira de Belém do Pará, o artista descobriu o monumento português em 2019, num intervalo dos estudos na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto.

Diante da construção, que exalta a narrativa nacionalista e imperial do regime salazarista, Mauricio, entretanto regressado ao Brasil, decidiu erguer a sua própria obra: a videoperformance “De uma Belém a outra”.

O registo mobilizou cerca de um ano de trabalho, e contou com a participação do artista pernambucano Dori Nigro, responsável pelas filmagens e produção. “O processo foi fundamental para que a exposição fosse realizada a partir de uma perspectiva de outros corpos, identificados pela mestiçagem, pretitudes, imigração, LGBTQIA+ em um país de brancos e brandos costumes”, lê-se no press release de divulgação.

“Porquê glorificar um passado de racismo e colonialismo?”

Em exibição na plataforma online da Uncool Artists, a videoperformance “De uma Belém a outra”, distinguida com o Prémio Rede Virtual de Arte e Cultura, da Fundação Cultural do Pará,  confronta a exaltação de uma memória que violentou milhões de pessoas indígenas e africanas.

“Se a formação de uma identidade nacional passa pela escolha de heróis e símbolos, porquê glorificar um passado de racismo e colonialismo? Porquê homenagear as figuras responsáveis por esse passado sangrento?”.

Os questionamentos acompanham-nos durante cerca de cinco minutos de videoperformance, ao longo dos quais somos lembrados que “não podemos mudar o passado”, que “a História até aqui já foi escrita, assim como os monumentos já foram construídos”, mas precisamos “ressignificar as imagens que reforçam estereótipos da dor”.

Mauricio Igor, fotografado por Isa Raquel

Mauricio Igor, fotografado por Samuel Costa

O convite à reflexão, “sobre qual a História que vamos contar, e principalmente como faremos isso” está lançado, e está longe de se esgotar à Belém lisboeta.

Os atravessamentos de ser imigrante-brasileiro-negrodescendente em Portugal

“O que vemos são práticas racistas e xenofóbicas, que actuam de forma pungente”, nota o artista, acrescentando que, mais do que ver, “nós sentimos” essas acções e omissões.

No seu caso, a passagem por Portugal encarregou-se de produzir novos “sentires”.

“Foi a primeira vez que saí do Brasil, então, a experiência trouxe mais uma camada à minha identidade: a de ser visto como imigrante. Passo então a ter os atravessamentos de ser imigrante-brasileiro-negrodescendente”.

Mauricio assinala, contudo, que “a xenofobia é uma forma de preconceito complexa que atinge não somente estrangeiros, mas também pessoas do próprio país”, conforme demonstra a sua experiência.

“Devido à amplitude geográfica e cultural do Brasil, já passei por situações de ser inferiorizado por ser do Norte do país, quando em deslocamento ao eixo sudeste, considerado o ‘centro’”.

Os monumentos não são inocentes

De volta às marcas da experiência portuguesa, o artista partilha, na videoperformance, dois dos “muitos estereótipos que cercam o corpo brasileiro”: o de que o português que utilizam é errado, e o de que as mulheres são prostitutas.

“E se reclamar, ouve-se coisas como “volta para a tua terra, não pertences aqui”.

Das interacções pessoais quotidianas – em que chegou a ouvir que o Brasil deveria agradecer porque “Portugal foi um bom colonizador” – para o espaço público, Mauricio reitera que “os monumentos não são inocentes”.

Pelo contrário, “carregam uma ideia, uma época, uma história”. Importa por isso questionar: “Mas uma história de quem?”.

Ainda longe de lidar com a sua herança histórica, conforme demonstrou um dos últimos episódios do debate televisivo “É ou não é?”, Portugal parece incapaz de transpor para o espaço público qualquer visão crítica do passado, que permita acolher no presente a pluralidade de memórias que formam a identidade nacional.

Não repetir o passado

“Os monumentos que homenageiam e exaltam as figuras directas nos processos de colonização também são formas contribuir para a ideia de hierarquias entre raças e nacionalidades, pois alimentam um orgulho do colonialismo”, considera Mauricio, encontrando na sua Belém natal um exemplo de ruptura com essa lógica opressora.

“Há um monumento que me despertava curiosidade desde criança: o Memorial da Cabanagem. Ele foi criado em comemoração aos 150 anos da revolta da cabanagem, uma revolta ocorrida na então chamada província do Grão Pará, durante a época imperial no Brasil, em que os chamados de cabanos (pretos, indígenas, mestiços e a classe pobre) tomaram o poder, ainda que por pouco tempo”.

O paraense sublinha que embora a sublevação tenha sido sufocada, o monumento representa “uma importante memória sobre organização popular”, simbolizando “uma revolta que vai na contramão de práticas coloniais”.

Ainda assim, o estado brasileiro do Pará continua a ser aquele que “possui maior número de cidades e distritos cuja origem dos nomes é Portugal, algo evidente desde o baptismo de sua capital como Belém”, observa o artista, evidenciando a urgência de renomeações e ressignificações. Tanto no Brasil, como no padrão lisboeta.

“Afinal, o que existe em comum entre Belém do Pará e a Belém Lusitana? E Brasil e Portugal? Quais são os contrastes visuais e socioculturais entre as terras além-mar e as amazônidas? São essas as respostas e provocações presentes em “De uma Belém a outra””, destaca a mensagem de apresentação da obra de Mauricio Igor, construída para a mudança.

“Parece ser necessário promover uma conscientização de um passado que não deverá ser repetido”. Nunca mais!

 

Assista à videoperfomance “De uma Belém a outra” na plataforma da Uncool Artist

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