Dia Internacional Nelson Mandela, o homem que redefiniu o perdão

Nascido Rolihlahla Dalibhunga Mandela a 18 de Julho de 1918 e falecido a 5 de Dezembro de 2013 como um gigante da humanidade, Madiba, rebaptizado Nelson na escola primária, conseguiu contrariar um destino racialmente hipotecado. Neste Dia Internacional Nelson Mandela que, desde 2009, é celebrado em sua homenagem, recordamos alguns momentos da sua história. Da “sombra branca” ao legado político, passando pela fama de “monstro e terrorista”. “O mundo esperava que nos autodestruíssemos numa guerra civil”, apontou em tempos o sul-africano que, ainda na prisão, iniciou a negociação da paz da nação arco-íris, empenho mais tarde alargado à criação de um Governo de unidade. Já fora da cadeia, após quase três décadas de reclusão, Mandela liderou o seu caminho de libertação. “Assim que atravessei a porta em direcção ao portão que me conduziria à liberdade, soube que se não deixasse os ressentimentos e a amargura para trás continuaria na prisão”.

por Paula Cardoso*

O pranto engoliu-lhe as palavras, emocionalmente desfeitas diante da figura do então Presidente da África do Sul. “Não consegui evitar. Desatei a chorar e ele, ao ver-me tão abalada, segurou-me a mão”, recorda Zelda La Grange, de volta ao primeiro encontro de uma relação fortificada a partir de lágrimas. “Na realidade tinha medo, não sabia o que esperar dele, se iria despedir-me, se acabaria por me humilhar…só sei que, quando dei por mim, estava dominada pelo sentimento de culpa que carregam todos os afrikaners [brancos]. Pensei: ‘A minha gente enviou este homem para a prisão”.

O relato, em tom confessional, recupera-se de uma entrevista assinada por John Carlin, jornalista especializado na política sul-africana, que acompanhou de forma privilegiada de 1989 a 1995, enquanto responsável da delegação do jornal britânico The Independent no país.

A sombra branca

A experiência, literariamente desbravada através da obra “Playing the Enemy: Nelson Mandela and the Game that Made a Nation” – que inspirou Clinton Eastwood a realizar o filme “Invictus”, sobre a forma como o ex- Chefe de Estado uniu brancos e negros através do rugby – permitiu-lhe descobrir “a sombra branca” de Madiba, descrição que cola à figura de Zelda La Grange.

Com 19 anos de dedicação ao “avô Mandela”, a outrora dactilógrafa da Presidência sul-africana, depois nomeada secretária pessoal, é a prova viva de como o ‘pai’ da nação arco-íris conseguiu reciclar velhos ódios, recuperando-os em nome da reconciliação nacional. “Cresci com a ideia de que tudo de errado que se passava na África do Sul era um problema dos negros contra os brancos. Era isso que nos ensinavam na igreja e no colégio”, reconhece Zelda, de memória pregada na ressaca do 11 de Fevereiro de 1990, data da libertação de Mandela.

“Nunca me esquecerei desse dia. Estava na piscina quando o meu pai comentou: ‘Agora vamos passar mal’. Perguntei porquê e ele respondeu: ‘O terrorista vai sair em liberdade. Quando insisti em saber de quem falava, foi taxativo e disse: ‘Nelson Mandela’. Percebi logo que era uma pessoa que representava o medo, que simbolizava uma ameaça”.

Na pele de “monstro e terrorista”

Da imagem de monstro inescrupuloso – que até 2008 manteve Madiba na lista dos terroristas dos EUA – para a exaltação de “um magnífico ser humano” – conforme assinalado pela ex-secretária –, a vida do primeiro Presidente negro da história da África do Sul quase não resistiu a 27 anos de cárcere. “Foram anos solitários e perdidos”, abreviou o antigo recluso entre partilhas com o então Presidente norte-americano, Bill Clinton, durante um encontro de 1998, uma década depois de ter sido acometido de uma tuberculose grave.

Primeiro confinado à máxima segurança de Robben Island – onde cumpriu 18 anos de reclusão, sobrecarregados com trabalhos forçados –, mais tarde transferido para a menos austera cadeia de Pollsmoor e, por fim, colocado em Victor Verster, Nelson Mandela respondeu por uma condenação por sabotagem e conspiração contra o regime do apartheid.

Por detrás da sentença, inicialmente apontada à pena de morte mas depois fixada num veredicto de prisão perpétua, estiveram anos de activismo político, iniciado ao lado de outro nacionalista (Oliver Tambo) e radicalizado a partir do massacre de Sharperville. A cidade africana onde, em Março de 1960, a Polícia disparou indiscriminadamente contra manifestantes negros, matando 69.

 

Surto radical e prisão perpétua

O episódio fragilizou os planos pacifistas daquele que se posicionava como uma das vozes mais influentes do ANC (Congresso Nacional Africano), partido que, sob os seus ímpetos reformistas, ganhou um braço armado: o Umkhonto we Sizwe – ou simplesmente MK.

Criado em 1961, o ‘exército’ do ANC nasceu, segundo as palavras de Mandela – explanadas no celebrizado julgamento de Rivonia, de 1964 – como uma “resposta à violência com violência”.

A inesperada reacção armada desafiou, de forma declarada, a liderança de Albert Luthuli, que, à data, conduzia o Congresso Nacional Africano com uma política de não-violência.

“Quando um homem vê recusado o direito de viver segundo aquilo em que acredita, não tem outra escolha senão tornar-se um fora-da-lei”, justificou Madiba, numa das raras exibições de força de um combate assumidamente maior do que a vida.

“Lutei contra o domínio branco e contra o domínio negro. Persegui o ideal de uma sociedade livre e democrática onde todas as pessoas vivem juntas, em harmonia e com igualdade de oportunidades. É um ideal pelo qual espero viver, mas, se for necessário, estou disposto a morrer por ele”. 

O manifesto de acção, apresentado em Rivonia – onde trocou a defesa de um advogado por quatro horas de alegações próprias –, ganhou mundo como uma das citações mais evocadas do activista, compiladas no livro “In the words of Nelson Mandela”. Em tradução livre, “Nas palavras de Nelson Mandela”.

Globalmente reconhecido pelo dom da oratória, Rolihlahla, identidade de nascimento que no português se pode definir por “agitador”, depressa se notabilizou pela destreza do verbo. Foi, contudo, a partir da cor que se moldou a sua personalidade política, maturada na fundação da ala da juventude do ANC.

“Não sei precisar em que momento soube que dedicaria a minha vida à luta pela liberdade. Mas sei que ser negro na África do Sul pressupõe estar politizado desde o nascimento”, escreveu Mandela na autobiografia “Long Walk to Freedom”, narrativa que recua a sua história até às origens, enraizadas no vilarejo de Mvezo e desabrochadas na aldeia de Qunu.

Criado até aos 9 anos pelo pai, que morreu vítima de tuberculose, Madiba – nome herdado do clã da sua etnia, os Xhosa – ficou entregue, a partir dessa idade, aos cuidados de um influente e instruído tio paterno. A tutoria valeu-lhe uma educação de elite, encaminhada para estudos universitários em Direito, numa faculdade tradicionalmente reservada a brancos: o Fort Hare University College de Alice.

A experiência despertou Mandela para um mundo de desigualdades raciais, aguçando-lhe o espírito contestatário, inicialmente reprimido com a expulsão da faculdade – retomada por correspondência –, e posteriormente oprimida com intimidações e ameaças de prisão.

“Só mais tarde apercebi-me que a luta consumia todo o tempo. Um homem envolvido no combate era um homem sem vida familiar”, admitiu Mandela em 1994, já em liberdade, mas ainda marcado pelas perdas do cárcere e da clandestinidade.

Além de dois matrimónios desfeitos, o primeiro com Evelyn Ntoko Mase e o outro com Winnie, o Nobel da Paz – que nos últimos 15 anos de vida casou com Graça Machel –, sempre lamentou a ausência o distanciamento dos filhos.

Nascido Rolihlahla Dalibhunga Mandela a 18 de Julho de 1918 e falecido a 5 de Dezembro de 2013 como um gigante da humanidade, Madiba, rebaptizado Nelson na escola primária, conseguiu contrariar um destino racialmente hipotecado.

“O mundo esperava que nos autodestruíssemos numa guerra civil”, apontou em tempos o sul-africano que, ainda na prisão, iniciou a negociação da paz da nação arco-íris, empenho mais tarde alargado à criação de um Governo de unidade.

“Agora já não nos pertence. Agora pertence à História”, enfatizou o ex-Presidente dos EUA, Barack Obama em 2013, numa das primeiras reacções ao desaparecimento do antigo Chefe de Estado, invariavelmente recordado pela capacidade de perdoar.

Mais do que isso, conforme apontou Mandela à saída de quase três décadas de cadeia, a insistência num futuro de comunhão entre oprimidos e opressores obedeceu a uma luta contra as próprias amarras. “Assim que atravessei a porta em direcção ao portão que me conduziria à liberdade, soube que se não deixasse os ressentimentos e a amargura para trás continuaria na prisão”.

*texto publicado a 13 de Dezembro de 2013, no extinto jornal Agora, de Angola