Do passado de Chica da Silva às actuais lutas feministas, há vida para romance

Recém-reeditado, o livro “Chica da Silva – romance de uma vida”, da jornalista brasileira Joyce Ribeiro, foi apresentado em Lisboa, antes de concretizar planos de viagem em direcção aos países africanos de língua portuguesa. A rota de divulgação, explicou a autora ao Afrolink, vai ao encontro de um sonho idealizado em 2016, com o lançamento da 1.ª edição da obra. Já o interesse pela “mulher contestadora” que foi Chica da Silva “vem de longe e sempre se renova”, tendo em conta “que muitas das questões enfrentadas por ela no século XVIII continuam presentes”. Fomos conhecê-las.

Texto de Paula Cardoso

Foto de capa de CPLP

A vida de Francisca da Silva de Oliveira, ou apenas Chica da Silva, deu mais do que um filme, uma novela, produções teatrais, livros, músicas e até um samba-enredo, antes de puxar pela veia literária da jornalista Joyce Ribeiro.

“As versões produzidas anteriormente despertaram em mim a vontade intensa de me aprofundar na história dessa mulher com uma biografia tão marcante”, assinala a também escritora, inscrevendo o seu “olhar de mulher negra” nesse acervo, para permitir uma nova compreensão da trajectória da afamada ‘Rainha do Tijuco’.

“A Chica da Silva que está no imaginário geral tem uma personalidade marcada pela excentricidade, e foi muitas vezes retratada como escandalosa e amoral. Eu conheci com a pesquisa, outras nuances dessa personagem”.

Educadora, gestora, cuidadora e mãe de família

O novo retrato, construído por Joyce Ribeiro, está presente em “Chica da Silva – romance de uma vida”, e mostra-nos, por exemplo, “a forma como ela valorizava a educação”.

Conta-nos a autora que já naquela época, Chica “fez questão que seus quatorze filhos estudassem: os homens e também as mulheres”.

Outro aspecto que ressalta da pesquisa e que também costuma ser ignorado prende-se com as suas capacidades de gestão.  “Chica da Silva desenvolveu habilidades muito valorizadas nos dias de hoje, como a capacidade de gerir e administrar seus negócios. Afinal, ela teve que lidar com todas as demandas da herança que recebeu do companheiro”, realça a autora. 

Joyce Ribeiro desconstrói igualmente o rótulo de maga sexual que se colou à identidade da protagonista da sua obra. “O estudo também aponta que o relacionamento entre ela e o contratador não foi apenas uma questão de libido. Juntos eles sonharam e formaram uma família aos moldes mais tradicionais da época, e ele cercou a companheira e os filhos de cuidados, para que tivessem direitos à sua fortuna, ainda que a relação não tivesse a aceitação da sociedade”.

As lutas de Chica que permanecem actuais

Além de nos oferecer uma leitura humanizada e humanizante da história da ‘Rainha do Tijuco’, a autora reflecte sobre como as lutas femininas e feministas do passado se mantêm actuais.

“Escrever o livro me trouxe o desafio de observar atentamente e descrever o mundo que cercava a Chica da Silva, e o mundo que as mulheres de hoje enfrentam”. 

Nesse processo, a jornalista encontrou uma “mulher contestadora” que lutou “com as ferramentas possíveis”, numa época ainda marcada pelo horror da Escravatura.

Chica “contestou, levantou sua voz e mostrou suas opiniões, mesmo na situação mais adversa de mulher escravizada”, sublinha Joyce, reiterando que “muitas das questões enfrentadas por ela no século XVIII continuam presentes”.

A consciência de que existem continuidades históricas que normalizam e perpetuam opressões evidencia que “a luta para os avanços das mulheres na sociedade” também deve ser ininterrupta.

“Temos muitas conquistas para comemorar, e hoje temos outras ferramentas para lutar – entre elas a internet, a comunicação –, contudo, ainda há um longo caminho pela frente”.

“A televisão não mostrava pessoas parecidas comigo”

Os desafios envolvem, à semelhança do que observamos na história de Chica da Silva, não apenas uma intervenção pela igualdade de género, mas também um firme combate pela igualdade racial.

“É preciso uma mudança de imaginário social, onde as pessoas negras encontrem representatividade em todas as áreas profissionais e os brancos entendam que os espaços de privilégio foram sedimentados na violência, na exclusão e na valorização de pessoas pela cor da pele. Só vamos construir um mundo mais justo e com a correcção dessas tragédias históricas unindo forças”.

A missão tem em Joyce Ribeiro uma enorme impulsionadora. Primeira jornalista negra a moderar um debate para as presidenciais do Brasil, em 68 anos de TV brasileira, e em 30 anos de democracia no país – feito alcançado em 2018 –, foi também a primeira mulher negra a assumir sozinha a condução de um jornal diário em horário nobre e em canais abertos.

“Acredito que cada geração abre espaço para que a próxima tenha uma jornada menos dolorosa”, defende Joyce, lembrando que antes de se aventurar na televisão teve de pensar numa alternativa. “Cogitei estudar Direito, porque a televisão não mostrava pessoas parecidas comigo na apresentação de programas, bancada dos telejornais”.

Pelo contrário, a jornalista nota que hoje “uma menina negra que liga a televisão no Brasil, tem inspirações como Glória Maria, Maju Coutinho, Cris Guterres, Dulcinéia Novais, Zileide Silva, Aline Midlej, Heraldo Pereira, Adriana Couto, Joyce Ribeiro e tantos outros nomes que abrilhantam o jornalismo”.

Apesar dos avanços, Joyce nota que a luta por uma maior representatividade “é um exercício constante e diário”, que não dá para abrandar.

“Durante estas duas décadas o jornalismo me proporcionou muitos momentos, desde o primeiro telejornal ao vivo, o debate presidencial, estreias de programas, entrevistas com personalidades. Mas não podemos perder o timing, celebramos uma conquista e já nos encaminhamos para novos desafios…”. 

Livro e documentário em África em perspectiva

 Das palavras à prática, Joyce Ribeiro prepara os próximos voos de “Chica da Silva – romance de uma vida”, apresentado no passado mês de Julho, na sede da CPLP, em Lisboa.

“Ainda não há uma data definida, mas o objetivo agora é levar a história da Chica da Silva aos países africanos de língua portuguesa”, antecipa, acrescentando que essa é uma meta definida desde a primeira publicação da obra, em 2016.

Agora que a nova edição ganhou vida, a autora retoma o sonho africano, extensivo a outro projecto “do coração”: a realização de um documentário em África, ainda guardado a sete chaves.

“A pandemia retardou um pouco o planejamento, contudo acredito que fortaleceu ainda mais os meus objectivos, e da minha equipe, para que tudo aconteça com mais excelência. Em breve divulgarei mais detalhes”.

Os desafios da mãe negra

Até lá, Joyce Ribeiro deixa-nos com mais uma reflexão sobre outro dos seus exercícios diários: a maternidade.

“Entre tantos desafios, uma mãe negra precisa fortalecer os filhos para o duro enfrentamento das questões raciais… e nós estamos fazendo isso”, salienta a jornalista, e mãe de duas meninas.

“A geração das minhas filhas tem o bónus de um debate mais amplo sobre diversidade. Elas estão crescendo em um mundo onde o cabelo natural, por exemplo, tem o seu espaço, as empresas de publicidade começam a despertar para a população negra consumidora e com demandas específicas a serem atendidas”.

O caminho da reparação, embora longo, constrói-se de esperança. “Muitos lutaram e conquistaram no passado, para que eu pudesse continuar superando, e para que as minhas filhas concretizem e ampliem as conquistas que nos levarão a uma sociedade mais justa e mais plural”.

Como Chica da Silva defendeu, com o seu exemplo. E como todos merecemos.