É um padrão português com certeza: perseguir para não deixar reflectir
por Paula Cardoso
O que acontecerá se juntarmos à narrativa nacional dos “descobrimentos”, versões transnacionais de acontecimentos que colocam Portugal no centro na destruição de milhões de vidas, pilhagem de civilizações e desmantelamento de culturas? O país mergulhará numa crise de identidade insanável? Voltará a perder a soberania?
Que fantasmas não permitem que sejamos capazes de confrontar o passado e de reconhecer que a História não é um romance floreado, cristalizado e isento de recensão crítica, mas um acervo dinâmico de realidades, vidas e factos que continuam a ser produzidos e escritos?
Porque é que não conseguimos olhar para a contestação a monumentos – nomeadamente aquela que visa o padrão dos descobrimentos – como um capítulo válido da nossa História, em vez de a rotularmos negativamente como uma tentativa de apagar a História?
E já que falamos em apagamentos, que tal reflectirmos sobre os apagamentos por detrás de cada monumento com que nos cruzamos? Que história conta, e que história deixa por contar?
A avaliar pelas notícias dos últimos dias foi justamente o que fez a cidadã francesa Leila Lakel, apontada como a autora de um grafiti que, no último fim-de-semana, assinalou o passado de violência perpetuado pelo padrão dos descobrimentos. Com estas palavras: “Blindly sailing for monney [sic], humanity is drowning in a scarllet [sic] sea lia [sic]”, traduzível para “Velejando cegamente por dinheiro, a humanidade afunda-se num mar escarlate”.
“Só nos falam da luso-ternura, foi mais morte, gamanço e tortura”
A mensagem, prontamente removida e amplamente repudiada como um acto de vandalismo – para alguns equiparável a terrorismo – ofereceu uma excelente oportunidade (mais uma) de promovermos um debate sério e profundo sobre os glorificados “heróis do mar”. Mas o país ainda prefere desconversar a enfrentar a herança histórica.
Nós não podemos. Na pele de descendentes de pessoas escravizadas e colonizadas, resistimos contra continuidades históricas que nos agridem diariamente. E continuaremos a questionar, como fez o artista visual Igor Mauricio, na videoperformance “De uma Belém a outra” : “Se a formação de uma identidade nacional passa pela escolha de heróis e símbolos, porquê glorificar um passado de racismo e colonialismo? Porquê homenagear as figuras responsáveis por esse passado sangrento?”.
As interrogações acompanham-nos ao longo desse trabalho, no qual somos lembrados que “não podemos mudar o passado”, e que “a História até aqui já foi escrita, assim como os monumentos já foram construídos”. Ainda assim, acrescenta Igor, precisamos “ressignificar as imagens que reforçam estereótipos da dor”, e reconhecer o seu impacto prejudicial. “Os monumentos que homenageiam e exaltam as figuras directas nos processos de colonização também são formas contribuir para a ideia de hierarquias entre raças e nacionalidades, pois alimentam um orgulho do colonialismo”.
Exigir uma reparação histórica não equivale a sugerir que a história deva ser reescrita, mas a defender a importância de construirmos, no presente, uma visão crítica do passado, acolhendo a pluralidade de memórias que formam a identidade nacional. Exigir uma reparação histórica não equivale a impor uma leitura única e ‘politicamente correcta’ do passado, é exigir que se reconheçam outras versões da História, capazes de evidenciar a vilania criminosa dos “heróis do mar” e de outros algozes imortalizados no espaço público.
Ou como se cantava recentemente: “Há um outro lado, como em tudo na vida, e na escravatura a cena é refundida. Só nos falam da luso-ternura, foi mais morte, gamanço e tortura. Foram brancos negreiros, barcos tão cheios, foram oceanos de horror”. Tingidos de um profundo escarlate.
Um tom pelo qual navegaremos n’ O Lado Negro da Força. Hoje com Dino D’Santiago como convidado.
Para ver no Facebook e no YouTube, a partir das 21h.