Em choque com o choque da ONU sobre a violência racista em Portugal

Se o combate ao racismo dependesse de relatórios, talvez Portugal fosse um exemplo internacional de boas práticas neste domínio. Como um doente em negação, que corre especialistas, desvaloriza os sintomas e recusa tratamento, o país persiste em seguir a estratégia de arrastar o constatar do óbvio, em vez de, sem hesitações, avançar com a implementação de medidas há muito identificadas como fundamentais. É o caso da revisão dos manuais escolares, que a equipa de peritos da ONU recém-destacada para o país voltou a recomendar. O mesmo grupo de trabalho declarou-se chocado com a brutalidade policial racista em Portugal, algo que deixou os mais incautos chocados, a avaliar pelas reacções à notícia. Já a mim choca-me este choque, tema em análise mais logo n’ O Lado Negro da Força.

por Paula Cardoso

Acabo de publicar a minha crónica no Setenta e Quatro, intitulada “Podemos não falar sobre o Racismo?”, e um par de novos casos – mais dois –assoma em reforço da minha resposta.

De um lado, uma racista encolerizada insulta um motorista negro sem que se perceba, à volta, qualquer gesto de condenação.

Do outro lado, um basquetebolista indigna-se contra os urros racistas que, das bancadas, atacaram os seus colegas negros.

Pelo meio, descobrimos que Grada Kilomba “não está comprometida com a dinamização e internacionalização da ‘cena’ artística e cultural portuguesa”, apesar de o seu trabalho só ter chegado a este país à beira-mar plantado a partir da sua projecção internacional.

Entre um e mais um e outro caso, noticia-se a mais recente visita de peritos do grupo de trabalho das Nações Unidas sobre Pessoas de Ascendência Africana, que, informa-nos a agência Lusa, vieram a Portugal a convite do Governo, “para reunir informação sobre quaisquer formas de racismo, discriminação racial, xenofobia, afrofobia ou outras intolerâncias, a fim de avaliar a situação global dos direitos humanos das pessoas com ascendência africana” no país.

Dominique Day, responsável máxima da delegação, mostrou-se “surpreendida com o número e a dimensão de relatos credíveis sobre brutalidade policial”. Os testemunhos recolhidos apontam, entre outros abusos de autoridade, para “as operações STOP, as buscas, a constante invasão da privacidade e dos corpos das pessoas” negras.

“Foi surpreendente ver como a identidade de Portugal permanece agarrada a uma narrativa colonial e até a ideia de diversidade de linguagem não é vista como algo forte, mas tornou-se uma fonte de pureza de dialecto e para menorizar estudantes baseada não no seu intelecto, mas no tipo de língua que falam”.

Já a especialista em Direitos Humanos Catherine Namakula, que também integrou a delegação, declarou ter ficado chocada com a forma como o passado colonial português perdura no dia-a-dia, nomeadamente por via de insultos racistas em espaços públicos.

“Isso não alinha com as normas de um país que se diz aberto e progressista”, apontou Catherine Namakula, citada pela Lusa.

Mais relatórios para quê?

A observações preliminares, vertidas para cerca de 40 recomendações ao Governo, darão lugar a um relatório final, que deverá ser divulgado em Setembro de 2022.

Mas, até lá, convém lembrar que os anteriores, de 2016 e 2012, continuam a cair em saco-roto, ainda que, em Julho passado, Portugal tenha aprovado o seu primeiro Plano Contra o Racismo e a Discriminação.

Fiquemo-nos por um exemplo: o Comité das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial alertou para a existência de imagens discriminatórias e estereotipadas de ciganos e afrodescendentes e outros grupos minoritários nos manuais escolares, recomendando ao Estado que avalie os currículos e os livros, assegurando que retratem melhor o passado colonial e a herança cultural dos diversos grupos, bem como o seu contributo para a sociedade e culturas portuguesas.

A proposta foi notícia em 2016 e, em 2021, uma visita ao Mosteiro da Batalha confronta-nos com um livro infantil de conteúdo abjecto, mas digno de inclusão no Plano Nacional de Leitura. Nele explica-se o destino de “tornar-se escravo” – (uma vontade reforça com correntes) – e como os “chefes africanos movidos pela ganância e riqueza” contribuíram para essa realidade.

Mais relatórios para quê?

Prosseguimos a análise mais logo n’ O Lado Negro da Força.

Para ver e ouvir  no Facebook e no YouTube, a partir das 21h.