Em nome do Pai – O Guardião dos Negros na Lisboa do século XIX

“Um povo sem o conhecimento da sua história, origem e cultura é como uma árvore sem raízes”, escreveu o jamaicano Marcus Garvey, um dos ícones maiores do movimento pan-africano. Retomamos aqui o seu pensamento para enquadrar as linhas que se seguem. Com actualização semanal, darão a conhecer, de forma sucinta, figuras e episódios que fazem parte do legado negro. Começámos pela Lisboa Africana quinhentista, e a história de Simoa Godinha, e hoje, permanecendo na mesma cidade, saltamos até ao século XIX, ao encontro do Pai Paulino.

por Paula Cardoso

Baiano de nascimento, Paulino José da Conceição destacou-se na Lisboa oitocentista, como uma das suas figuras mais populares.

O protagonismo que assumiu está bem expresso em dois dos epítetos que cunham a sua história: “Pai Paulino” e “Guardião dos Negros”.

“Caiador, gaiteiro na procissão do Corpo de Cristo, membro de diferentes confrarias, combatente liberal condecorado, defensor dos direitos dos Africanos, desempenhou um papel relevante na resolução de conflitos que os envolviam, participando em diferentes actividades religiosas, culturais, lúdicas portuguesas”, lê-se em “A presença africana em Portugal, uma História Secular: Preconceito, Integração, Reconhecimento (Séculos XV – XX)”, de Isabel Castro Henriques.

A autora – especializada em História de África, e cuja obra tem contribuído para visibilizar o legado negro na sociedade portuguesa – , foi uma das três signatárias de uma proposta para  erguer um “busto em memória do lisboeta Pai Paulino”.

O projecto, apresentado no final de 2018, concorreu ao Orçamento Participativo de Lisboa 2018/19, mas acabou rejeitado, por, no âmbito do programa municipal BIP/ZIP 2018, ter sido aprovado e financiado um outro semelhante. Trata-se da iniciativa “Presença Africana em Lisboa”, proposta pela Associação Cultural e Juvenil Batoto Yetu Portugal, que prevê, entre outras actividades, a inauguração de um busto à memória do Pai Paulino.

Os planos abrem caminho à adiada homenagem ao afamado Guardião dos Negros, nascido em 1798, num Brasil sob o jugo do império português, e falecido a 12 de Março de 1869, na sua residência na freguesia de Santos.

“Como acontecia com os membros do seu grupo, foi enterrado numa vala do cemitério do Alto de São João, mantendo-se a tradição que excluía os africanos das formas normais de enterro, modo de proceder que já se registava no século XVI”, assinalam Isabel Castro Henriques e Pedro Pereira Leite, em “Lisboa, Cidade africana – Percursos e Lugares de Memória da Presença Africana Séculos XV – XXI”.

No mesmo trabalho, os autores distinguem, entre outros atributos, a participação do Pai Paulino “nas lides tauromáquicas do Campo de Sant’Ana, muito apreciadas e publicitadas entre os lisboetas”.

 

Influente na resolução de litígios, e na compra de cartas de alforria 

A notoriedade adquirida por Paulino José da Conceição está cunhada no texto que acompanhou a proposta para a elevação do busto em Lisboa, disponível no site da Câmara Municipal.

Segundo o documento, o baiano “fixou-se em Lisboa depois de ter sido um dos militares que, em 1832, desembarcou no Mindelo com as tropas dos liberais. Pertencia à Brigada da Marinha, tendo a sua bravura sido condecorada”.

Figura activa nas irmandades lisboetas que reuniam a comunidade negra, com destaque para a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e Adoração dos Santos Reis [Magos]”, o Pai Paulino mediava litígios que envolvessem populações africanas, ajudando-as a resolvê-los, bem como a “comprar as suas cartas de alforria e de liberdade”.

A intervenção do Guardião dos Negros passava ainda por “interceder junto dos poderes públicos, de forma a permitir direitos iguais às mulheres regateiras africanas e livres, ou a protecção das habitações dos africanos da intervenção policial em determinadas circunstâncias”.

A influência do Pai Paulino, igualmente reconhecida pela Corte e classe dirigente, ficou documentada na obra do ceramista e caricaturista Rafael Bordalo Pinheiro, que lhe dedicou algumas peças. Como os bustos que acompanham este artigo. Testemunhos de uma herança negra que importa visibilizar. Pela nossa memória.