Entre a prova e a provação dos crimes de ódio racial, um sinal de Justiça

Os precedentes jurídicos obrigavam a moderar expectativas, por mais que a motivação racista do assassino de Bruno Candé tenha sobressaído da generalidade dos relatos recolhidos no local do crime. Mas, na última segunda-feira, 28, a sentença do julgamento do homicida do actor afastou o cenário habitual, reconhecendo o óbvio: foi o ódio racial, e não um qualquer desentendimento, que levou Evaristo Marinho a matar Candé. Num veredicto histórico, o assassino foi condenado a 22 anos e nove meses de prisão, decisão que estará em análise mais logo n’ O Lado Negro da Força.

Texto por Afrolink

Fotos de Filipa Bossuet

Num Portugal em que a negação do racismo persiste, como esperar que o ódio racial seja reconhecido em tribunal?

Se, no processo da esquadra de Alfragide – em que oito polícias foram condenados por agredir seis jovens da Cova da Moura – o Ministério Público começou por reconhecer que vários agentes dispararam insultos como “pretos do ca…”, “deviam morrer todos”, “a vossa raça devia ser exterminada”, mas depois deixou cair a acusação pelo crime de ódio racial, como esperar que no caso de Bruno Candé fosse diferente?

Em vez de esperarem, activistas anti-racistas uniram-se à porta do Tribunal de Loures, criando um movimento para exigir justiça para o actor e a sua família.

A missão cumpriu-se, no que à sentença diz respeito: no passado dia 18 de Junho, Evaristo Marinho foi condenado a 22 anos e nove meses de prisão por assassinar Bruno Candé, veredicto agravado pela motivação racista do acto.

“A agravante [da pena por ódio racial] é uma prova de que essa situação existe em Portugal”, destacou o advogado José Semedo Fernandes, sublinhando que estamos perante “uma condenação histórica”.

José Semedo defendeu ainda que o crime que vitimou Candé “exige que se imponham medidas para evitar que mais situações destas aconteçam, e que na sociedade portuguesa tenhamos pessoas que atacam com base no ódio racial”.

Condenar o racismo com força de lei

Talvez se perceba, finalmente, que é necessário tipificar o crime de racismo no Código Penal, que prevê prisão para actos de violência, difamação, ameaças, fundação de organizações de propaganda que incitem ao ódio ou discriminação, mas não nos diz que actos devem ser considerados racistas.

Isso mesmo ressalta do estudo “COMBAT – O combate ao racismo em Portugal: uma análise de políticas públicas e legislação antidiscriminação”, da Universidade de Coimbra.

 

Muitas vezes os órgãos competentes para julgar os casos não estão a par “do que constituiria ódio racial ou discriminação racial”, alertou a investigadora Silvia Rodríguez Maeso, responsável pela pesquisa, segundo a qual cerca de 80% dos processos instaurados pela Comissão pela Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) entre 2006 e 2016 foram arquivados.

A impunidade está igualmente demonstrada pelos dados do Ministério da Justiça: entre 2007 e 2018 apenas 13 pessoas foram condenadas por crimes de discriminação racial ou religiosa, incitamento ao ódio e à violência.

O levantamento, apresentado pelo Polígrafo no início do ano passado, destaca “um pormenor curioso”: o de que nesse “período de 11 anos, apenas num deles [2008] houve condenações por crimes desta natureza”.

Contra a normalização da violência racista

Perante esta dificuldade legal em reconhecer o racismo percebe-se porque é que os advogados da família Candé consideraram “histórica” a decisão proferida em Loures.

Na leitura do veredicto, a presidente do colectivo de juízes disse não existir “qualquer dúvida” sobre a motivação racista do crime, tendo em conta os insultos utilizados, como “preto de merda, vai para a tua terra” e “a tua mãe devia estar numa senzala”.

Apesar das múltiplas evidências apresentadas – e provadas em tribunal – Alexandra Bordalo Gonçalves, advogada de Evaristo Marinho e presidente do conselho de deontologia de Lisboa da Ordem dos Advogados, insistiu na alegação de que a utilização de palavras racistas não basta para demonstrar presença de ódio racial.

Será preciso morrer mais alguém para que baste?

A discussão prossegue maais logo, n’ O Lado Negro da Força.

Para ver no Facebook e no YouTube, a partir das 21h.