Era uma vez (n)o jornalismo: os múltiplos “erros” da cor do racismo

Tinha 23 anos quando entrei na minha primeira redacção, como estagiária. Saí em 2019, 16 anos depois, como directora. Entre o início em Portugal, e o fechar de um ciclo em Angola – que tive o privilégio de escolher para dar o salto que me trouxe ao Afrolink –, os episódios racistas sucederam-se. Todos subtis, próprios de um Portugal que não é racista, mas…Talvez por isso se opte por suspender o “erro” que discrimina uma pessoa negra, em vez de se confrontar o sistema que o produz e normaliza. Estes foram alguns dos “erros” a que sobrevivi.

Fundadora da comunidade digital “Afrolink”, que visibiliza profissionais africanos e afrodescendentes residentes em Portugal ou com ligações ao país, é também autora da série de livros infantis “Força Africana”, projectos desenvolvidos para promover uma maior representatividade negra na sociedade portuguesa. Com o mesmo propósito, faz parte da equipa do talk-show online “O Lado Negro da Força”, e apresenta a segunda temporada do “Black Excellence Talk Series”, formato transmitido na RTP África. Integra ainda o Fórum dos Cidadãos, que visa contribuir para revigorar a democracia portuguesa, bem como o programa de mentoria HeforShe Lisboa. É natural de Moçambique, licenciou-se em Relações Internacionais e tem 17 anos de experiência em Jornalismo.

Paula Cardoso

por Paula Cardoso

Erro#1

Estava a viver um sonho. Depois de nove meses no Curso de Especialização em Jornalismo do Cenjor – para o qual fui seleccionada, juntamente com outros 11 candidatos, a partir de provas de conhecimento e entrevista –, consegui um estágio na revista Visão.

Na altura morava em Vialonga, onde ainda vivem os meus pais, e, como sempre me desloquei de transportes públicos, demorava entre 1h30 e 1h45 a chegar à redacção. Hoje parece-me demasiado tempo – tendo em conta as distâncias que me habituei a percorrer desde que mudei  de casa para Lisboa –, mas na altura era perfeitamente normal. Afinal, antes disso, tinha feito quatro anos de licenciatura, ‘queimando’ três horas diárias em transportes.

Adiante: tendo em conta os horários a que estava habituada, costumava chegar à redacção “de madrugada”. Nada de mais, não fosse eu depender das orientações de outros para ter alguma coisa para fazer. Então, depois de umas boas duas semanas nisto (pelo que me recordo), decidi ultrapassar a inibição, e perguntar se havia horário de entrada. Lá me disseram que poderia chegar um pouco mais tarde, tipo 10h-10h30 (estava a entrar uma hora mais cedo do que isso), mas, quem respondeu sentiu necessidade de me lembrar, subtilmente, o que esperavam de “alguém como eu”.

Em vez de se limitar a indicar o meu horário de entrada (sempre me programei para não ter horário de saída), o meu editor acrescentou que, no passado, um colega cabo-verdiano ou guineense foi useiro e vezeiro nos abusos. Aparentemente, esse colega tornou-se memorável pelas baldas, e chegou a ser apanhado na boa vida quando dizia estar em reportagem. O que é que eu tinha que ver com isso? Porque é que aquele exemplo foi para ali chamado?

Confirmei, mais uma vez, que tinha de fazer mais e melhor do que os meus colegas brancos para justificar a minha presença naquele espaço.

Erro#2

Quando saí da Visão, para integrar a equipa fundadora do Sol, houve, segundo me relataram duas amigas e ex-colegas, um problema com o acesso aos conteúdos de uma agência de notícias internacional.

Para quem não está familiarizado com este meio, fica uma breve contextualização: as redacções pagam pelos serviços das agências noticiosas, sendo que há variações de preço consoante o número de utilizadores.

Como escrevia com alguma regularidade para a secção de internacional, era uma das pessoas com acesso às agências. Uma em quantas? Desconheço. O que sei é que quando se deu o problema alguém se lembrou de sugerir que eu ainda estaria a beneficiar desse acesso.

Acrescento que não fui a única a deixar a Visão naquela altura. Mas, vá-se perceber, há algo de suspeito em mim.

Erro#3

Já no Sol, foi a entrada de capital angolano no projecto, e consequente expansão da marca para Angola – e a determinada altura também para Moçambique e Cabo Verde –, que tornou visível o que tantas vezes não quis ver.

Desde logo, a progressão profissional: enquanto aparecia na linha da frente para chefiar redacções em Angola – diziam-me que por causa das minhas múltiplas competências –, nunca sequer fui considerada para uma posição de editora ou sub-editora em Portugal. Pelo contrário, assisti à entrada e saída de várias chefias manifestamente incompetentes.

Se cheguei a directora em Angola – por escolha de um homem branco, numa corrida com outro homem branco – foi porque pela primeira vez o meu desempenho falou mais alto do que a minha cor.

Erro#4

Uma boa história deveria ser “apenas” isso: uma boa história. E como boa história deveria ter espaço em qualquer publicação. Na prática, isso não acontece. As histórias com protagonismo negro têm de ser brutalmente excepcionais. Partilho dois exemplos.

Na altura em que o Sol tinha publicações em Angola, Moçambique e Cabo Verde (neste país a presença foi brevíssima, mas existiu) apelou-se a que, nas reuniões de planeamento, os jornalistas passassem a apresentar propostas de temas também tendo em conta esses mercados. Mas, atenção, nada de misturas!

Lembro-me bem da luta de um colega para tentar publicar também em Portugal uma história incrível que tinha feito para as ‘revistas afro’. Lembro-me de o ver semanas naquilo, a insistir, sem perceber porque é que já tinha publicado tantas páginas de menor interesse, e, de repente, não conseguia espaço para dar a conhecer a vida daquela mulher negra.

Na altura, pensei comigo: está a sentir algo muito comum na vivência negra – a revolta da exclusão.

Como jornalista com vários anos de experiência, esse meu colega sabia que aquela história cumpria todos os requisitos para ser publicada. O que ele desconhecia é que quando somos negros, nem todos os requisitos nos valem.

Poderia partilhar outros casos que se passaram comigo, exactamente com os mesmos contornos, mas passemos ao exemplo número dois. Aconteceu antes de Barack Obama ser eleito Presidente dos EUA.

Como continuei a escrever para a secção de internacional, ler o que a imprensa estrangeira publicava era uma das minhas rotinas. Foi assim que cheguei a uma série de conjeturas sobre o advento do primeiro Presidente negro na história dos EUA. Animada com esta possibilidade, propus o tema ao meu editor. Não me esqueço da sua reacção de escárnio. “Ah, ah, ah, um Presidente negro nos EUA, ah, ah, ah. Olha, quando ele for eleito, falamos sobre isso.” Não me esqueço do que senti: Ao homem negro pede-se que seja algo tão excepcional como Presidente dos EUA, para ser considerado.

 Erro#5

É sintomático do problema notar como os argumentos usados para excluir pessoas negras da cobertura mediática portuguesa – é preciso que os leitores se revejam nos conteúdos e a supremacia branca determinou que a população negra não compra nem lê jornais – são olimpicamente ignorados quando se trata de decidir a presença de pessoas brancas no espaço mediático negro.

Na minha passagem pelo Sol, perdi a conta aos casos de histórias excepcionais de pessoas negras que não conseguiam espaço nas ‘páginas brancas’, enquanto os protagonistas brancos tinham o privilégio de ocupar todas e quaisquer páginas.

Pior do que isso, a menoridade com que as ‘publicações afro’ eram tratadas saltava à vista. Se os temas aprovados para entrada na edição portuguesa tinham de ser defendidos com unhas e dentes, em função da relevância jornalística, os assuntos planeados para as ‘edições afro’ eram decididos com base “no factor cor”. Assim mesmo.

Tenho bem presente uma reunião de planeamento em que uma colega o verbalizou: “Com base no factor cor, proponho…”. Pouco importava que o tema não valesse um chavo. Era evidente que a bitola para o mercado afro era outra, desprovida das mais elementares exigências jornalísticas.

Parece exagero? Então, tomem mais esta: em dia de fecho, já com o horário estabelecido com a gráfica e esgotar-se, uma colega alerta para um erro na manchete da edição moçambicana. Não era uma gralha, era um erro factual, recordo-me que estatístico. Devidamente prevenido para o problema, o director respondeu: “Eles não vão perceber”. Não tenho dúvidas de que para a edição portuguesa parariam as máquinas.

Erro#6

As microagressões, conforme nos habituamos a classificar, nunca deixaram de estar presentes no meu percurso profissional. Nunca.

Era intencional? Nunca senti que o fosse. Mas a discriminação não se torna menos violenta e traumática quando resulta de preconceitos ‘adormecidos’ no subconsciente.

Imaginem vocês que até tive uma colega que fazia insistentes comentários sobre os meus “oleosos” hábitos alimentares. A mulher vivia obcecada com isso. Numa dessas ocasiões, ela perguntou se estava a comer bife de atum, porque lhe cheirava a isso. Respondi que estava a almoçar strogonoff de frango. Resposta: “Logo vi, bife de atum seria demasiado sofisticado para ti”.

Escusado será escrever que ela estava a brincar, e que qualquer leitura distinta da minha parte apenas confirma a minha falta de sofisticação…não apenas gastronómica, mas também humorística.

Erro#7

Avanço para mais uma nota: aquando da minha temporada em Angola, a determinada altura fui coordenadora de uma revista (liderada a partir de Lisboa).

Até à minha chegada, essa função apenas tinha sido desempenhada por pessoas brancas. Até à minha chegada, essa função incluía a responsabilidade de escrever um editorial semanalmente, publicado com foto. Seria o meu primeiro espaço de opinião, mas desapareceu por “artes mágicas”.

Nunca ninguém me disse uma palavra sobre isso, a não ser a pessoa que coordenava essa revista em Lisboa, e que decidia tanto quanto eu. Ela reparou na ausência, estranhou e verbalizou. Nada mudou.

 Erro#8

Enquanto partilho essas experiências, ocorrem-me outras. Demasiadas. Mas fico-me por esta: a determinada altura, o Sol decidiu que o líder dos skinheads portugueses deveria ser entrevistado.

Não me recordo bem do contexto, mas creio que tinha que ver com a sua libertação. Uma amiga minha ficou com o trabalho, e receou imediatamente pelo fim da nossa amizade. Outro colega veio dizer-me isso, que ela não sabia como me contar que lhe deram aquele trabalho, e que ela aceitou fazer (os jornalistas têm o direito de não aceitar este ou aquele tema, ao abrigo da cláusula de consciência).

Até hoje sou profundamente grata pela sensibilidade e o cuidado que esses meus colegas tiveram comigo nesse episódio. Esperar o mesmo dos decisores será pedir muito?

 Erro de sistema

À medida que revisito aqui a minha experiência no jornalismo, faço uma interpretação do “erro” assumido pela agência Lusa, em relação à agressão noticiosa contra a deputada Romualda Fernandes.

Não se trata de um erro de identificação inaceitável, mas sim de um erro histórico de configuração. Por isso, suspender o “erro” não basta.

Comecemos por eliminar os racistas. Assumamos que é importante formar os jornalistas para a diversidade – em todas as suas manifestações. Reconheçamos que é fundamental abrir as redacções a profissionais de todas as etnias e minorias – sim, estou a falar de quotas. Criemos comités para a diversidade, cuja composição reflicta a pluralidade da nossa sociedade, permitindo não só identificar as más práticas como propor e implementar estratégias para a sua erradicação.

Enquanto continuarmos iludidos com suspensões e demissões, quantos continuarão a tratar pessoas negras como um “erro”?