“Essencial é a Fome”: um registo familiar pelos (des)afectos da pandemia

Os cuidados prestados por Maria Palmira Joaquim garantiram, na fase crítica da pandemia, o acompanhamento diário e presencial de um casal idoso. No mesmo período, o trabalho da poeta e activista Raquel Lima ajudou a preencher programas culturais online e, no âmbito dos colectivos de que faz parte, a atenuar carências socioeconómicas. Juntas no vídeo “Essencial é a fome”, Maria Palmira e Raquel partilham experiências profissionais vividas em tempos de confinamento e desconfinamento, e vivências pessoais próprias da relação de mãe e filha que as une. Para conhecer até 31 de Outubro, no palco online do Teatro do Bairro Alto.

por Paula Cardoso

Março chegou com o estado de emergência, e o confinamento obrigatório. Abril manteve o país fechado, à excepção dos serviços considerados essenciais. Maio trouxe as primeiras medidas de desconfinamento, alargadas em Junho à reabertura das creches e dos centros comerciais.

Num calendário colectivamente marcado pela pandemia da covid-19, as memórias individuais parecem diluir-se numa amálgama de notícias sobre a actualização do número de casos, as regras sanitárias, os efeitos na economia, e tantas outras incidências de uma realidade mais acontecida do que vivida.

Não estranha, por isso, que as recordações do período de confinamento e início de desconfinamento puxem por referências de experiências.

“Acho que foi em Junho. Ou terá sido em Julho? Não sei bem…”. A dúvida de Raquel Lima, partilhada com a mãe, Maria Palmira Joaquim, revisita os meses de distanciamento físico que viveram. Março, Abril, Maio, Junho… “Sim, foi em Julho”, conclui, a filha, com um olhar rápido pela agenda: “Tenho a certeza, porque foi no mês do concerto de GUME”.

Da poesia à geriatria, o que há de essencial?

O sétimo mês de 2020 marcou o reencontro familiar depois de quatro meses de restrições sanitárias, virtualmente compensadas por videochamadas e mensagens no WhatsApp.

De um lado, Raquel suportava a pandemia em Coimbra, onde vive, do outro lado, Palmira passava metade desse tempo de separação familiar em Lisboa, sem sequer pôr os pés em casa, na Margem Sul do Tejo.

“Eu trabalho como interna, a cuidar de duas pessoas de idade e, com o confinamento, optei mesmo por ficar lá, por não vir a casa aos fins-de-semana, até porque eles tinham de estar protegidos. Não podiam receber os filhos nem os netos”, conta Maria Palmira, por cerca de dois meses privada da sua morada, para prestar, presencialmente e diariamente, cuidados geriátricos a um casal com problemas crónicos de saúde.

Enquanto isso, a filha Raquel ajudava a preencher programas culturais online, integrando, entre outras actividades, um Ciclo de Escrita e Poesia Anti-racista, promovido pelo Museu do Aljube e pelo grupo EducAR.  Ao mesmo tempo, a poeta, performer, arte-educadora e doutoranda, participou activamente na recolha de alimentos para famílias carenciadas, através do Núcleo Antirracista de Coimbra, em articulação com parceiros locais, nomeadamente o Projeto Nzinga e a Associação Cigana de Coimbra.

O que há de comum no trabalho de Raquel e Maria Palmira? O que há de diferente? Como atravessaram o confinamento e o desconfinamento? O que há de essencial na intervenção de cada uma?

A fome do corpo e a fome do espírito

Essas e outras questões cruzam-se no palco online do Teatro do Bairro Alto (TBA), que desafiou quatro profissionais da Cultura a convidarem outros tantos trabalhadores essenciais, e a produzirem, em duplas, vídeos desses encontros.

O resultado, inserido no projecto “Essenciais”, pode ser visto até 31 de Outubro no YouTube do TBA, onde Raquel e Maria Palmira demonstram que “Essencial é a fome”. Não apenas a fome do corpo, mas também a fome do espírito.

“Sim, porque neste tempo de pandemia e confinamento nos sentimos carentes. E aí entra a fome, a fome de apoiar os outros, de ler um livro, de ouvir um poema, de fazer uma refeição em grupo…Esta falta, esta necessidade de estar com as pessoas, é a esta fome que eu me refiro também. Porque a água e a comida são essenciais, mas não basta satisfazer a fome física”, defende Maria Palmira, explicando o ponto de partida para o vídeo em exibição no TBA.

O trabalho que, na apresentação de Raquel, “não é necessariamente uma performance e tem até muito de documental”, abre-se a “várias interpretações”, admite a poeta, enquanto revisita o processo criativo.

“Escrevemos a sinopse juntas, e recordo-me que estava numa coisa muito formal, quase académica. Então, a minha mãe disse: ‘Ó filha, estás a escrever como se estivesses a falar com alguém do teu doutoramento. Foi aí que perguntei: ‘Como é que achas que podemos colocar a questão da fome?’ E a minha mãe escreveu essa parte da fome de uma refeição em conjunto, a fome espiritual etc. Fomos construindo juntas, mas esse ponto de partida foi mais dela, e eu acho que tem mais a ver com a experiência dela no trabalho, porque a minha mãe está a trabalhar como interna por uma questão de sobrevivência”.

“Sim”, assente Maria Palmira. “Se eu não tivesse a necessidade, ficaria em casa em confinamento, mas não me pude dar esse luxo. Tive de afastar-me da minha casa, do meu filho que vive comigo, para ficar na casa de outras pessoas, para cuidar de outras pessoas, porque eu preciso de comer”. 

“Essa fome real existe, não a queremos romantizar”, acrescenta Raquel, salientando: “A verdade é que o trabalho precarizado acontece porque as pessoas têm de comer”.

A conversa prossegue no mesmo registo familiar que encontramos nos cerca de 20 minutos de duração de “Essencial é a Fome”.

A revolta do afecto

“Tem um bocado o trabalho da minha mãe, tem um bocado o meu trabalho, que passa pela poesia, pelo activismo, e pela cena mais académica, e depois há ali outras camadas de significado que eu tentei criar, com uma máquina de escrever e um decreto”.

A dimensão “mais abstracta” de “Essencial é a Fome” devolve-nos ao Portugal fascista dos anos 30, e liga-se à narrativa presente no vídeo pela “revolta do afecto”.

“Como é que uma pessoa consegue, apesar de uma situação de precariedade, gerar afecto? Como é que encontramos afecto onde não é suposto estar? E não é suposto face às desigualdades sociais. Então, temos essa revolta do afecto, em uma série de mulheres cuidadoras, como a minha mãe, demonstram uma capacidade incrível de amar o próximo, apesar da sua história de diáspora. E eu tentei aproximar um pouco isso à questão de uma máquina de escrever, porque também ela representa essa revolta, no caso ligada à minha história”.

O simbolismo, explica Raquel, assenta na assinatura por detrás dessa máquina: um decreto-lei publicado pelo regime de Salazar, para estabelecer um modelo português de teclado que garantisse a sua feição nacionalista.

“Curiosamente, tenho uma máquina com esse teclado, que comprei numa loja de artigos em segunda mão, sem conhecer a origem”.

Já depois de pesquisar sobre a compra, e perceber a sua paternidade opressora, a poeta conta como decidiu subvertê-la.

“Chamo a isto a revolta do afecto, que parte deste lugar: “Como é que eu vou amar esta máquina, e produzir a minha poesia nela, apesar de ela ter sido fabricada à luz de um programa fascista? Aí encontro um paralelo, ainda que mais subtil, com o trabalho da minha mãe”.

O fortalecimento da relação mãe-filha

As ligações entre a poeta e a auxiliar de geriatria entrelaçam-se durante cerca de 20 minutos de gravações, gravadas apenas com recurso a um telemóvel.

Como é que, nesse cenário, as duas fortalecem a relação de mãe e filha?

Devolvemos a pergunta, lançada na sinopse de “Essencial é a Fome”, a Raquel e Maria Palmira.

“Acho que a relação se fortaleceu por compreendermos o que há de comum nos nossos trabalhos, em que a chave é muito essa revolta do afecto”, destaca a filha.

Já a mãe, sublinha um fortalecimento afectivo a partir da ausência. “Eu e a Raquel temos uma abertura grande para conversarmos, para falarmos abertamente de muita coisa. Então houve aquela saudade que batia constantemente, apesar de fazermos sempre videochamadas, e também houve uma grande preocupação, porque descobri que a Raquel, em vez de ficar sempre em casa, andava lá nos bairros, em Coimbra, a fazer campanhas e a ajudar as pessoas de idade a fazer compras. Tudo isso fez a relação ficar mais forte”.

“Mesmo!”, complementa Raquel. “Quando nos voltamos a encontrar, fiquei um mês em casa da minha mãe para matar saudades”, conta a poeta, que além das conversas longas, e das essencialidades profissionais, partilha com a progenitora um novo ritual de relaxamento.

“Começámos a fazer massagens juntas.  Acho que para a minha mãe é mesmo preciso, fisicamente falando, porque o trabalho é muito pesado. Não é um luxo, não é lazer, é mesmo uma questão de cuidado”.  Essencial.