Este país não é para negros, mas…venham daí uns pretos de arremesso

A internacional portuguesa Jéssica Silva foi apresentada como reforço da equipa feminina de futebol do Sport Lisboa e Benfica no final da semana passada. A notícia, amplamente reproduzida na imprensa desportiva, mereceu o seguinte comentário de um auto-intitulado jornalista: “Para uma preta, [Jéssica Silva] até tem umas feições bonitas”. As palavras tornaram-se virais no último fim-de-semana, mas, como sabemos, em Portugal os racistas gozam de imunidade de grupo. De tal forma que quando Cíntia Martins, futebolista negra de 14 anos, reagiu a insultos provenientes da bancada, quem acabou expulsa foi ela, e não quem a chamou de macaca. Mais “dois episódios isolados” da série secular “Portugal não é um país racista”. Para seguir mais logo, na segunda parte d’ O Lado Negro da Força. Até lá, quem será o próximo “preto”?

por Paula Cardoso

Tinha uns oito anos quando comecei a ir à bola com o meu pai. Percebia zero daquele mundo, mas, antes de me especializar nas bancadas tinha ali um oásis num árido deserto de referências negras.

Bastou, contudo, um par de experiências de estádio – ainda na Velha Catedral –, para descobrir que, afinal, o futebol não era um espaço livre de racismo.

Lembro-me do enorme desconforto de, demasiadas vezes ao longo dos 90 minutos de jogo, ter de lidar com insultos racistas irreproduzíveis. Numa ou noutra ocasião, ao se aperceberem da presença do meu pai, alguns travavam o discurso de ódio, quase sempre encurtado nestes termos: “Não leve a mal”.

Tenho memória de pelo menos um momento em que o meu pai levou a mal, e que só o facto de eu estar ali permitiu arrefecer os ânimos.

Recordo-me também de, à nossa volta nas bancadas, nunca ter visto ninguém preocupado com o impacto dos insultos racistas em mim, tal a normalização da violência.

Pelo contrário, a espiral de palavrões já merecia alguma atenção de quando em vez: “Atenção à linguagem, está aqui uma criança”.

Hoje adulta, sei que não existe qualquer excepção desportiva à regra do Portugal estruturalmente racista.

Sei que, da mesma forma que um pseudo-jornalista se sente no direito de escrever numa rede social que a internacional portuguesa Jéssica Silva “até tem umas feições bonitas, para uma preta”, não faltam adeptos nos estádios alinhados para disparar mais um insulto racista.

Desta vez aconteceu a Cíntia Martins, futebolista negra de 14 anos, que joga pelo Sporting. O clube apressou-se a expressar o apoio à atleta – algo que deve ser reconhecido –, mas inquieta-me que no momento em que tudo aconteceu ninguém se tivesse apercebido.

Como é que uma miúda está a ser chamada de macaca enquanto joga futebol, e, ao reagir, é ela quem recebe ordem de expulsão?

Agora que o caso ganhou visibilidade – a partir da denúncia do treinador – haverá alguma consequência?

E para o auto-intitulado jornalista, alguma punição?

Mais “dois episódios isolados” da série secular “Portugal não é um país racista”, apenas adora ter uns “pretos” a jeito para posar ‘superioridade lusotropicalista’.

Pretos – sublinhe-se – e não negros, porque isso seria reconhecer o direito de “coisas” à autodeterminação.

Nós resistimos humanos, e encontramo-nos mais logo, na segunda parte d’ O Lado Negro da Força.

Para ver em directo no Facebook e no YouTube.