Fragmentos de negritude feminina, traduzidos no movimento de Marisa Paulo

A partir das vivências partilhadas por mais de uma dezena de mulheres negras residentes em Portugal, Bélgica, Itália e Espanha, a coreógrafa e professora de dança Marisa Paulo constrói a performance “Fragmentos”, até 4 de Janeiro em residência artística no Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro. Além dessa recolha biográfica, focada em entender como género e pertença étnico-racial marcam identidades enraizadas em África e construídas na diáspora, a criação envolve pesquisa documental, num processo ainda em aberto e que, na próxima quinta-feira, 15, inclui a condução da oficina “Da Raiz ao Movimento”. “O objectivo é que os intervenientes se questionem sobre identidade, pertença e herança cultural, através do movimento de matriz africana”, antecipa Marisa Paulo, que, em conversa com o Afrolink, explica as singularidades que tornam “Fragmentos” tão plural.

A realização de entrevistas é parte fundamental do processo criativo

Texto de Paula Cardoso

Fotos cedidas pela produção de “Fragmentos”

O que significa ser mulher negra na Europa? Como condensar essa identidade em três adjectivos? Que vivências a acompanham? Com quem as partilhamos? De quem as protegemos?

Quaisquer que sejam as respostas, há um movimento que as traduz à espera de acontecer, através do corpo da coreógrafa e professora de dança Marisa Paulo.

A conversão de testemunhos em gestos coordena-se na performance “Fragmentos”, até 4 de Janeiro em residência artística no Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro.

Idealizada por Marisa Paulo, a criação vive dessa recolha biográfica, feita a partir de entrevistas a mulheres negras residentes em Portugal, Bélgica, Itália e Espanha, a que se junta uma componente de pesquisa documental.

“Fui à procura de informação sobre a realidade das mulheres negras, por exemplo no acesso ao emprego, à saúde e à educação”, explica Marisa, acrescentando que para contornar a falta de estatísticas étnico-raciais recorreu ao conhecimento de quem intervém no terreno.

Uma performance em construção

O resultado desse encontro entre histórias e dados ganha expressão em “Fragmentos”, performance que continua em construção, juntando movimento, música e comunicação audiovisual.

“Esta é uma criação que, efectivamente, não tem data de finalização, não tem data para a apresentação do espectáculo. Estou mesmo a trabalhar o processo”, revela Marisa, a dias de concretizar mais uma etapa da sua produção: a oficina “Da Raiz ao Movimento”.

A proposta, que vai conduzir na próxima quinta-feira, 15, no mesmo espaço onde decorre a residência artística, tem como objectivo “que os intervenientes se questionem sobre identidade, pertença e herança cultural, através do movimento de matriz africana”.

A par da oficina, a construção de “Fragmentos”, projecto apoiado pela Direcção-Geral das Artes, prevê a realização de ensaios abertos. A começar pelo Brasil.

“A ideia é mostrar o que já tiver sido desenvolvido em termos de performance, e depois promover uma conversa com o público sobre o processo criativo. Acho importante conversarmos sobre o que é visto do palco, o que está a ser tratado, como é que as pessoas entendem o movimento, qual é a leitura que fazem do que estão a ver”.

Já depois da presença no Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro, “Fragmentos” apresenta-se em Portugal, no próximo ano, havendo uma parceria com a Associação Juvenil Batoto Yetu Portugal para a realização de um ensaio aberto.

“Será semelhante ao que vou fazer no Rio de Janeiro, com a diferença de que terei naturalmente mais trabalho para mostrar.” Sempre com foco na negritude, vivida no feminina.

A diversidade na igualdade

“O que pretendo é trazer para palco experiências, vivências, conhecimentos de diferentes mulheres negras. Sabemos que a nossa vida é pautada por momentos semelhantes, mas também existe muita diversidade nas nossas histórias. Isso é algo que tento captar e perceber”.

Nesse exercício de compreensão, Marisa fez questão de incluir países cuja população negra tivesse várias proveniências africanas – e não apenas a lusófona.

Daí resultaram entrevistas não apenas em português, mas também em italiano, espanhol e francês, idiomas que também dão vida ao espectáculo.

“As mulheres que entrevistei vão estar em palco comigo através dos áudios, vídeos e fotos que fomos recolhendo”, nota Marisa, que contou com o apoio de Alesa Herero na produção.

O processo tornou-se tão rico que a criadora de “Fragmentos” já sonha com outras versões da performance. A começar por um documentário.

“Depois da diversidade de testemunhos, do amor, e da dor partilhada nas entrevistas fico a pensar em como seria bom aproveitar o material para além deste primeiro momento”.

Empenhada em não desperdiçar os fragmentos de vida que lhe foram confiados, Marisa sublinha que os testemunhos não foram recolhidos para servir esta ou aquela narrativa.

“Por exemplo, não estava à procura de relatos de dor. Quando perguntei o que representa ser mulher e ser negra, e quando pedi para partilharem uma experiência, não estava a direccionar em nenhum sentido. Queria mesmo perceber.”

Temos de falar mais entre nós

Sem mãos a medir face à pluralidade das respostas, e ao mesmo tempo entusiasmada com a sua força documental, Marisa confessa que ficou com vontade de recolher ainda mais testemunhos.

“Acredito que o processo pode ter ainda mais diversidade. Por exemplo,  não tive a possibilidade de entrevistar mulheres mais velhas. Apenas falei com uma que está na casa dos 50, e sei que o projecto teria a ganhar com este conhecimento”.

Outra via identificada por Marisa para multiplicar as vozes no palco é a realização de workshops com mulheres negras e afrodescendentes. “Gostaria de agarrar no material recolhido e depois incluí-lo na performance. É uma forma de visibilizar mais histórias”. Também é um meio de colocar em prática uma das aprendizagens que guarda deste processo criativo, verbalizadas por uma das mulheres que entrevistou.

“Temos de falar mais entre nós. Temos de falar mais de nós, e para nós”. Comecemos por “Fragmentos”. A cura em movimentos.

Marisa Paulo, na residência artística da performance “Fragmentos”, no Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro

A performance “Fragmentos” está a ser desenvolvida com os seguintes apoios:

República Portuguesa – Cultura | DGARTES – Direção-Geral das Artes

Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro | Secretaria Municipal de Cultura

Associação Cultural e Juvenil Batoto Yetu Portugal