Humilhação, depressão, perda do útero, racismo – Hospital de Cascais na Justiça

Alvo de um processo disciplinar em 2018, aberto a partir da queixa da filha de um doente, a auxiliar de saúde Ana do Vale (nome fictício), funcionária no Hospital de Cascais, contestou a acção. Apesar de ter conseguido o apoio do Ministério Público, pelo caminho desenvolveu um quadro de depressão que continua a exigir tratamento psiquiátrico, e agravou um problema de saúde, precipitando uma cirurgia para retirada do útero. O caso, que incluiu humilhações em público e privado, ameaças de despedimento e suspeitas de racismo, está no Tribunal do Trabalho, devendo ser julgado no próximo mês de Fevereiro. Até lá, a funcionária apela a novas denúncias, garantindo que o seu caso está longe de ser o único dentro da instituição, mas reconhecendo que o medo de represálias continua a falar mais alto.

por Paula Cardoso

De baixa médica, após ter sido submetida a uma cirurgia para remoção do útero, Ana do Vale (nome fictício), auxiliar de Saúde ao serviço do Hospital de Cascais, responsabiliza a entidade empregadora pela deterioração do seu estado de saúde, agravado a partir de um processo disciplinar.

O caso remonta a 2018, quando a filha de um paciente apresentou queixa contra a auxiliar, na sequência de um pedido que ficou por satisfazer.

“Estava sentada, a passar os turnos do computador para um programa que tenho no meu telefone. Ao mesmo tempo, começaram a tocar várias campainhas”, recorda Ana ao Afrolink, explicando que a prioridade naquele momento era solicitar a presença de enfermeiros nos quartos de onde vinham essas chamadas.

“A filha de um doente, ao ver-me sentada, deve ter pensado que eu não estava a fazer nada. Por isso quando me pediu para mudar a fralda do pai, porque estava com xixi, e eu disse para aguardar um bocado, até que a minha colega regressasse, ela não gostou”.

Mais do que estar assoberbada, numa altura em que um dos colegas tinha ido levar um paciente para fazer um Raio-X e a outra colega se tinha ausentado para lanchar, a auxiliar sabia que uma simples mudança de fraldas lhe poderia trazer complicações.

“Para começar não era um doente meu, mas da minha colega que estava a lanchar, o que faz com que não conhecesse o seu estado clínico”, adianta Ana, acrescentando que, mesmo que estivesse sem fazer nada, seria imprudente intervir.

“O senhor poderia ter uma prótese, algo que só saberia se tivesse o seu historial e que seria um motivo para não o mexer sozinha. Porque se acontecesse alguma coisa seria minha responsabilidade”.

Ao mesmo tempo, a profissional de Saúde nota que faltava cerca de meia hora para a volta da mudança das fraldas.

“Não fazia qualquer sentido estar a correr para um doente que não era prioritário, quando tinha outro aos prantos a precisar de ser tratado, desesperado por estar muito doente e completamente sozinho, sem qualquer apoio familiar”.

Sozinha com 31 doentes

Ana garante que tentou explicar, sem sucesso, a situação à filha que exigia uma resposta imediata para o pai. Insatisfeita, a mulher avançou com a queixa, situação que, garante a auxiliar, está longe de ser isolada, quanto mais não seja porque os familiares tendem a estar especialmente sensíveis.

Para além disso, a família do doente em questão já era conhecida pelos conflitos recorrentes com outros profissionais do hospital, sobretudo enfermeiros.

“Estava descansada porque sei que fiz o meu trabalho, numa altura em que estava na ala com 31 doentes ao meu cuidado”, diz Ana, que acabou surpreendida com a reacção da sua entidade patronal.

“No dia seguinte, na habitual passagem de turnos, com a sala cheia de enfermeiros e auxiliares, a enfermeira-chefe começou a ler a queixa e a humilhar-me perante toda a gente. Até os meus colegas ficaram revoltados, a perguntar-me: ‘Porque é que ela fez isso assim, em público, em vez de ouvir a tua versão?’”.

Mais tarde, quando finalmente foi chamada para uma conversa, Ana teve a oportunidade de confrontar a tal enfermeira-chefe com a mesma questão: “Porque é que optou por humilhar-me em vez de me ouvir?”.

Da conversa resultou uma exigência: a auxiliar teria de pedir desculpas à filha do doente.

“Senti que se quiseram aproveitar da situação para limpar a imagem dos enfermeiros e do hospital, que já tinham tantos problemas com aquela família”, nota a profissional, que não recusou o encontro.

“Aceitei falar com a senhora, mas disse que se fosse para pedir desculpas teria de fazê-lo a todos os familiares dos doentes que estavam naquela ala. Porque o pai dela não era o único naquela situação”.

Contestou judicial travou planos de despedimento

A resposta desencadeou ameaças de despedimento, que Ana não esquece. “Ouvi coisas como: ‘Sabes o que acabaste de fazer? Espera para ver o que te vai acontecer. Tens um contrato que pode ser cancelado a qualquer momento’”.

Daqui para a abertura de um processo disciplinar foi um ápice.

“Toda a gente foi ouvida e a mim nunca me deram a oportunidade de me defender”, assinala a auxiliar, que contratou um advogado para responder à nota de culpa.

O apoio jurídico permitiu perceber que não havia fundamento para o processo, que, não fosse a pronta intervenção, poderia ter resultado em despedimento.

“Fui ao Ministério Público (MP) de Sintra apresentar queixa, a procuradora ouviu-me. Depois entraram em contacto com o hospital, avisando que se avançassem com o processo disciplinar o MP iria apoiar-me”.

Conforme explica o advogado José Carriço, actual representante legal de Ana do Vale, o hospital nunca chegou a executar a suspensão do exercício de funções que tinha decidido, graças a essa impugnação judicial.

Ainda assim, a auxiliar foi transferida para o bloco de partos, decisão que não deixa de corresponder a uma penalização.

“Há muito que abracei a causa de cuidar dos idosos, porque vejo que recebem pouca atenção das famílias. Comecei por trabalhar em lares, antes de passar o hospital”, conta Ana, que, mais uma vez, se sentiu desconsiderada.

Depressão e perdas de sangue

Apesar de ter sido bem recebida pelas colegas do novo serviço – “toda a gente no hospital conhecia a minha história e sabiam que jamais trataria mal um doente, por isso tive apoio” –, o que Ana pretendia era continuar no cuidado a idosos.

O revés, depois de mais de seis meses de luta, acabou por conduzir a um quadro de depressão, ainda hoje sujeito a tratamento psiquiátrico.

“Fiquei muito revoltada, não tinha vontade de fazer nada, queria desistir de tudo”, recorda a auxiliar, explicando que continua a tomar medicação “para poder fazer vida normal”.

Como se não bastasse a deterioração da saúde mental, Ana teve de lidar com o agravamento de um problema ginecológico.

“Tinha miomas antes de tudo isto começar, mas nunca deixei de ter uma menstruação regular, até que com os nervos e ansiedade causados por toda essa situação comecei a perder muito sangue”.

Diagnosticada com uma anemia, e já depois de tentar elevar os níveis de hemoglobina com mudanças alimentares e procedimentos clínicos, Ana continuava a piorar.

“Tinha uma barriga de grávida, o meu útero ficou enorme”, descreve, acrescentando que a solução acabou por ser uma cirurgia para remoção do útero.

O desfecho, que a profissional correlaciona com todas as provações emocionais a que tem sido sujeita, deverá ser adicionado ao processo em curso contra o Hospital de Cascais, inicialmente circunscrito ao impacto na saúde mental.

Acusação por discriminação racial complicada de provar

Segundo explica o advogado José Carriço, em causa está o pedido de uma indemnização por danos morais, em curso no Tribunal do Trabalho de Sintra.

O julgamento deverá iniciar em meados do próximo mês de Fevereiro, antecipa o jurista, referindo que embora também existam suspeitas de discriminação racial – e até perseguição – essas alegações são muito complicadas de provar em tribunal.

Mas Ana não tem dúvidas de que o facto de ser uma mulher negra, nascida em Cabo Verde, determinou o rumo dos acontecimentos.

“Até os meus colegas deram conta que houve uma diferença de tratamento”, nota a auxiliar, sublinhando que não faltam exemplos no hospital que corroboram essa perspectiva.

Numa ocasião, aponta a cabo-verdiana, a enfermeira-chefe ordenou que ela e duas colegas brasileiras remexessem o lixo hospitalar em busca de uma peça desaparecida.

“Estamos a falar de algo que custaria 50€ a substituir, e que se perdeu no turno de uma colega portuguesa branca”, recorda Ana, lamentando que a opção tenha sido esperar pela equipa de mulheres migrantes.

“Nunca mais me esqueço da humilhação, nem das minhas colegas a chorar”.

O episódio, prossegue a auxiliar, é revelador de uma série de más práticas no Hospital de Cascais que, defende, por medo de represálias, os funcionários continuam a não denunciar.

“As pessoas preferem bater com a porta, mas eu quero ir até às últimas consequências”, garante esta mãe de uma rapariga, já sem hipótese de uma segunda gravidez.

“Ainda queria ter um rapaz, porque o meu sonho sempre foi ter um casal”, revela, enquanto recupera da ainda recente cirurgia de remoção do útero. E luta por Justiça.

 

Nota: o Afrolink tentou ouvir o Hospital de Cascais, por telefone e por e-mail, mas não obteve resposta.