Humor de ressignificação: o “Blackface” que confronta a prática racista

Depois da antestreia em Montemor-o-Novo, no passado mês de Setembro, o espectáculo “Blackface”, de Marco Mendonça, apresentou-se esta noite em Lisboa, no Teatro do Bairro Alto, com casa esgotada. Seguem-se outras duas sessões, amanhã, 18, e no domingo, 19, ambas também lotadas, e rematadas por uma conversa sobre esta criação, que começou a ser pensada há cerca de dois anos.
“Eu diria que é um espectáculo para pessoas negras se divertirem, e para pessoas brancas reflectirem”, introduz o também actor, que, com este trabalho, pincelado de humor, responde não apenas a uma necessidade de expressão individual, mas igualmente de intervenção colectiva.

Texto por Paula Cardoso

Fotos de Joana Linda

Filho de homem branco português, e de mulher negra moçambicana, Marco Mendonça sentiu, desde cedo, o embate de dois mundos racialmente desequilibrados. “Eu era automaticamente considerado uma pessoa inteligente, especial, e que chegaria longe. Já me era incutida uma certa prosperidade só pela minha aparência, e isso era uma coisa que as crianças da minha idade pareciam assumir também. Não sei por influência de quem, mas provavelmente dos pais que também tinham mais ou menos a mesma ideia”.

De volta às primeiras interacções sociais, construídas em Moçambique, o actor recorda a origem desse tratamento especial: “Era considerado um menino branco por ser filho de um homem branco, e isso dava-me privilégio”.

A consciência dessa realidade ganhou expressão com a mudança para Lisboa, vivida aos 12 anos. “Ao chegar a Portugal, percebi que, afinal, não era branco, mas que, ao mesmo tempo, também não era propriamente negro. Ou seja, de repente eu cheguei a uma espécie de não lugar, de ângulo morto”, conta Marco, recordando as marcas da transição.

“Senti que fiquei muito agarrado a uma certa necessidade de me integrar, de pertencer a um contexto branco, porque na minha turma, especificamente, eram só alunos brancos, e eu e mais outro aluno negro. Então…acho que houve aí uma espécie de pressão. Não sei se foi uma coisa que eu impus a mim próprio, ou se era uma coisa externa, mas havia essa pressão de mudar o sotaque, de trabalhar a minha maneira de falar, de tentar gostar das mesmas coisas que aquelas pessoas gostavam. Eu diria que só há pouco tempo é que eu comecei efectivamente a pensar sobre esses processos”.

Do passado para o presente, as memórias e reflexões de recorte racial ganham expressão em palco, com o espectáculo “Blackface”, criado pelo moçambicano, a partir de uma ideia que se começou a desenhar há cerca de dois anos.

Diversão com reflexão

Já em 2023, a produção, que marca a estreia de Marco Mendonça como autor a solo, esteve em residência artística na Bélgica antes de subir ao palco do Teatro do Bairro Alto, esta noite, com casa esgotada.

Inserida na programação do Alkantara Festival, a criação será apresentada em mais duas sessões, amanhã, 18, às 19h30, e no domingo, 19, às 17h30.

Sempre com sala lotada, “Blackface” despede-se com uma conversa que junta o autor à poeta, performer e activista Gisela Casimiro, num encontro moderado por Raquel Lima, investigadora em estudos pós-coloniais, e também poeta e performer.

“Eu diria que é um espectáculo para pessoas negras se divertirem, e para pessoas brancas reflectirem”, introduz o autor, que, com este trabalho, pincelado de humor, responde não apenas a uma necessidade de expressão individual, mas igualmente de intervenção colectiva.

“Se tenho uma plataforma, se tenho confiança de algumas instituições para poder pôr em cena coisas sobre as quais me interessa falar, em vez de fazer um post no Instagram, vou fazer um espectáculo”, nota Marco, apostado em dar a volta ao texto.

“O sistema em Portugal está montado de uma forma muito, muito específica, e muito direccionada para um certo tipo de histórias e narrativas. Por isso, se não escrever o tipo de coisas que eu gostaria de fazer, provavelmente ninguém mais o vai fazer”, assinala o também actor que, em “Blackface”, combina pesquisa com as suas vivências racialmente configuradas.

“O espectáculo tem muita contextualização histórica, dos Estados Unidos e Portugal, e também um bocadinho de França, Inglaterra, etc”, descreve o moçambicano de 28 anos, acrescentando que, no final, a produção vira-se um bocadinho mais para si.

“Como é que eu me posiciono em relação a isto?”. A auto-análise percorre múltiplas experiências, por exemplo sobre o que viveu, sobre aquilo de que se lembra, ou que imagina que pudesse ter acontecido.

Escritas negras

O processo criativo, destaca Marco, constrói-se em equipa. “Estamos aqui, um conjunto de pessoas, a revisitar coisas extremamente violentas e extremamente horríveis, e a perceber um bocadinho mais sobre elas e como surgiram, nomeadamente o seu contexto histórico”.

Ao mesmo tempo, o autor sublinha o compromisso de “imediatamente fazer humor, de se tentar desmistificar o trauma colectivo” de uma prática racista e vexatória como o blackface.

“Na minha opinião, é possível também que esse trauma seja transformado numa coisa não só de humor, mas também de reescrita de uma certa narrativa de representação de pessoas negras. E é um bocadinho isso que eu estou a tentar trabalhar no espectáculo”.

Ou seja: “Como é que pessoas negras, sendo o sujeito do blackface se podem transformar em quem decide de que forma é que esse humor é feito?”.

Através da sua criação, Marco procura “também transformar pessoas brancas no sujeito desse humor”, considerando que “foram elas que o inventaram, e são elas também passíveis de ser gozadas, tendo feito este tipo de representações” das pessoas negras.

Firme no caminho da mudança, Marco Mendonça partilha a vontade “de investir também na escrita para ficção televisiva ou de cinema”, a que junta o compromisso “de desafiar pessoas em lugares de decisão e influência a porem pessoas negras a escrever”.

Na busca por uma maior representatividade no meio artístico português, o autor conta as barreiras que tem enfrentado.  “Existe uma espécie de resposta geral quando falo nestas questões, que costumo obter do outro lado – vou chamar-lhe assim, não metendo aqui nenhuma ideia de rivalidade ou de competição. Pessoas brancas dizem que os canais, as produtoras, etc, não são muito a favor de carregar bandeiras”, diz o moçambicano, enquanto sublinha a importância de romper resistências.

“Se uma temática faz parte da minha vivência, eu não me vou descartar disso só porque uma instituição ou entidade não quer carregar uma bandeira”.

Marco alerta ainda para o viés que insiste em encerrar pessoas negras em contextos estritamente raciais. “Também me interessa escrever sobre amor, família, infância, vida adulta…coisas abstractas, coisas concretas…muita coisa”. Para entreter e reflectir.

Ficha Artística

Direção artística, criação e interpretação Marco Mendonça Apoio à criação Bruno Huca Apoio à dramaturgia Gisela Casimiro Composição musical e sonoplastia Mestre André Desenho de luz Rui Monteiro Cenografia Pedro Azevedo Figurino Aldina Jesus Vídeo Heverton Harieno Produção Alkantara (Sinara Suzin, Carolina Gameiro) Coprodução Alkantara, Teatro do Bairro Alto e Teatro Viriato Residência de coprodução O Espaço do Tempo Apoio à residência Moussem Nomadic Arts Centre (Bruxelas) Apoio Co-pacabana