Inquérito – ou choque? – de realidade: o peso étnico-racial nas desigualdades

Quase dois anos depois de ter chumbado a inclusão de uma pergunta sobre a origem étnico-racial da população no próximo Censos, o Instituto Nacional de Estatística (INE) prepara-se para avançar, ainda em 2021, com um inquérito sobre as origens, condições e trajectórias dos cidadãos. O levantamento estatístico é fundamental para avaliarmos em que medida as nossas diferenças étnico-raciais se traduzem em desigualdades, e, a partir daí, para elaborarmos as políticas públicas mais ajustadas à sua reparação. O caminho de mudança está traçado, e, a partir das 21h30, passa pelo Lado Negro da Força. Hoje com a professora Ana Josefa Cardoso como convidada.

por Paula Cardoso

O questionamento acompanha-nos enquanto folheamos os manuais escolares das nossas crianças. Prossegue quando procuramos livros infanto-juvenis em que nos possamos rever. Continua enquanto assistimos televisão, quando nos cruzamos com publicidade em outdoors e lemos as colunas de opinião nos jornais. Onde estão os negros?, perguntamo-nos. E os portugueses com outras pertenças?

Profissionalmente falando, e no que respeita à presença negra, ela parece “condenada” a um universo de precariedade e subalternidade, aqui e ali justificado pela alegada menor qualificação dos africanos e afrodescendentes.

Mas, quanto desse discurso reflecte a realidade, e quanto não se limita a reproduzir lógicas de uma sociedade estruturalmente racista, que se recusa a aprofundar o debate sobre as heranças do passado escravocrata e colonial?

Porque é que quando se questionam ausências, há uma pressa para responder com exemplos de excepcionalidade, criando-se a narrativa que existe equidade no acesso às oportunidades? “Um país que tem uma ministra da Justiça negra, não pode ser racista”, ouvimos.

Da mesma forma, quando as pessoas negras explicam que enviar um currículo com ou sem fotografia determina – em demasiadas situações – serem ou não chamadas para uma entrevista, isso tende a ser desvalorizado. Seja porque “tiveram azar porque encontraram pessoas ignorantes”, seja porque “também acontece com pessoas brancas”. Porquê?

Os porquês de quem sente na pele o preconceito e vive diariamente a discriminação conduzem a uma reflexão: existe a percepção, ainda que subconsciente, de que os negros são menos capazes ou até incapazes para ocupar determinadas funções.

“Produto com defeito”

De que outra forma explicar as reacções à indicação da deputada Beatriz Gomes Dias como cabeça-de-lista do Bloco de Esquerda na disputa à liderança da Câmara Municipal de Lisboa?

Há uma dificuldade histórica de enfrentarmos estes fantasmas, e, por isso, é fundamental que tenhamos dados estatísticos que nos ajudem a fazê-lo. Precisamos perceber que não estamos a discutir relações interpessoais, estamos a discutir um sistema de poder construído com base na ideia de que o homem branco é superior e o homem negro inferior.  Por isso ao homem negro não se reconhece sequer o direito de falar, a menos que corrobore aquilo que é dito pelo homem branco.

Por isso, o homem negro continua a ser desumanizado de cada vez que contesta o sistema, e torna-se automaticamente um “produto com defeito”, que importa devolver à origem.

Mas aquilo que para muitos de nós é óbvio está longe de o ser para quem não vive o preconceito e a discriminação na pele. Porque por mais empatia que tenhamos, convém que não percamos a humanidade de perceber que o conhecimento de causa é importante, mas não substitui a vivência de causa.

Negros, brancos, asiáticos, ciganos, todos falamos de lugares diferentes, mas nem todos somos ouvidos. Porquê?

Para quem insiste em negar que vivemos numa sociedade estruturalmente racista, talvez a recolha de dados étnico-raciais seja um abre olhos necessário. Desde logo para a diversidade de pertenças que nos enformam,

Afinal, com um retrato étnico-racial do país, que o Instituto Nacional de Estatística (INE) se propõe realizar, será ainda possível negar que as diferentes pertenças étnico-raciais se traduzem em desigualdades no acesso à educação, habitação, emprego, saúde e tanto mais?

Será seguramente um passo certo rumo à elaboração de políticas públicas ajustadas a uma reparação.

A reflexão segue a partir das 21h30, n’ O Lado Negro da Força.

 

Para ver, no Facebook e no YouTube, todas as quintas-feiras, a partir das 21h30.