Invisibilidade racial e Autismo: quanto pesam etnia e estigmas culturais?

Antes de passar para a segunda linha deste texto, respire fundo e reflicta sobre o que lhe vem à mente quando ouve a palavra “Autismo”. Para mim, as primeiras associações são o filme “Rain Man – Encontro de Irmãos” (1988), o meu afilhado, e “um ser único”. Para tantos outros, esse termo gira em torno de definições como “não-verbal”, “génio”, “diferente”, “introvertido” ou “anti-social”. Mas, o que é exactamente o Autismo? E de que forma a pertença étnica tem impacto no diagnóstico e posterior acompanhamento médico? Em busca de respostas, falei com um especialista e com duas mães cujos filhos têm Perturbações do Espectro Autista (PEA), todos residentes em Inglaterra, como eu. Para alertar e expandir consciências.

por Jamila Pereira*

Sem respostas, confusa, incompreendida, e até desprezada, Jessica, mãe de duas crianças, arrastou um calvário durante anos. “Lembro-me de estar deprimida e pensar que ninguém me entendia”, conta a guineense, revisitando os obstáculos que encontrou para que o filho fosse diagnosticado com Perturbações do Espectro do Autismo (PEA).

Além de enfrentar a habitual dificuldade no reconhecimento dessa condição, Jessica viu as suas preocupações sobre alguns comportamentos do filho serem justificadas por outro quadro clínico: aos seis meses a criança tinha sido diagnosticada com síndrome de Sturge-Weber, uma disfunção vascular congénita associada a complicações neurológicas, como convulsões e deficiência intelectual.

Teria sido menos complicado se Jessica não fosse uma pessoa negra? Os dados existentes no Reino Unido, país onde realizamos este trabalho, sugerem que sim.  Apesar da reconhecida falta de pesquisa interseccional sobre este tema – que nos permita analisar em profundidade o impacto de múltiplas discriminações –, é ponto assente que as diferenças raciais pesam no diagnóstico de autismo. Desde logo pelas barreiras no acesso aos serviços médicos – incluindo linguísticas –, agravada pela desvalorização das inquietações dos pais pelos profissionais de saúde, que resulta na dificuldade em obter diagnósticos, em conhecer as opções de tratamento disponíveis, e escolher de forma informada a melhor resposta para a família.

O peso da etnia e estigmas culturais

O problema está descrito num relatório desenvolvido pela National Autistic Society (NAS), documento que enumera uma série de entraves vividos por famílias não brancas diante de casos de Perturbações do Espectro do Autismo (PEA).

A par das adversidades encontradas no meio clínico para se obter um diagnóstico, importa destacar como essa informação ainda tem de passar por um processo – muitas vezes penoso – de aceitação social, cultural e familiar.

A história de Marta, que tal como Jessica tem um filho com PEA, é um exemplo disso mesmo.  “A minha mãe, o pai da criança e a avó materna insinuaram que eu estava a impor isto ao meu filho. Um completo descaso com os profissionais médicos e comigo mesma”, desabafa a angolana, assinalando a necessidade de combater o desconhecimento.

“Não é algo contagioso, está longe disso, mas os pais africanos podem ver isso como uma doença”, nota Marta, que põe em evidência a dificuldade de as famílias aceitarem que se trata de uma condição. Ou, usando a definição do Apoio e Inclusão ao Autista (AIA), Autismo corresponde a “uma série de perturbações do desenvolvimento da criança caracterizadas por um conjunto de sintomas, e provocadas por um problema a nível neurológico. As pessoas com perturbações do desenvolvimento têm dificuldades na maioria das actividades de vida diária, nomeadamente ao nível da linguagem, mobilidade, aprendizagem, autonomia e vida independente.” 

O acesso a esse e outros dados é, para Ken Greaves, especialista em PEA que trabalhou para a NAS, uma etapa fundamental para travar estigmas.  “Conscientizar os pais sobre o que é o Autismo é tão importante porque para muitos (…) pode ser percebido como uma ‘coisa branca’, uma coisa europeia ou eurocêntrica, e os pais não são necessariamente coniventes com isso”.

Ao explorar o estigma cultural, Ken Greaves destaca que existe uma tendência para culpar e envergonhar os pais da criança pela situação, desconhecimento que também repercute num clima de tensão nas relações com os profissionais de saúde.

O profissional sublinha ainda que “os pais [negros] são mais propensos a tornarem-se subservientes ao que os profissionais dizem”, acrescentando que quando se tornam “muito assertivos, são vistos como pais ‘difíceis’”. Por isso, propõe: “A nossa comunidade precisa se unir para nos apoiarmos uns aos outros, e os profissionais locais devem entender as necessidades específicas, a diversidade cultural e apoiar ao máximo no que puderem”. Nesse sentido, o especialista defende que “as famílias negras precisam de melhores estratégias e estruturas para apoiá-las nesta jornada”.

Combate ao desconhecimento

A luta contra a falta de informação ressalta também como uma prioridade na experiência de Jessica.  “O estigma da condição está relacionado com o desconhecimento da mesma, que ao contrário do que se percebe na opinião pública, não é uma doença. Quando se diz que o autismo é um espectro, estamos a falar de níveis e conjuntos de comportamentos. Não existe um teste objectivo que dê positivo ou negativo. Acredito que por esta razão, muitos de nós também fiquemos confusos ou até relutantes em aceitar o diagnóstico.”

Ao mesmo tempo, Jessica alerta para o efeito negativo das reacções desinformadas. “Os meus suportes foram, sem dúvida, o meu parceiro e uma amiga próxima. Eram as únicas pessoas com quem podia ter conversas francas sem ser atropelada com o típico “ele parece estar bem”, “ele faz tudo”, “olha que eu não acho que ele tem nada disso””. A guineense explica que “por mais que as pessoas sejam bem-intencionadas”, sente que “é inconveniente e de mau tom fazer esse tipo de comentário, levando em consideração a sensibilidade do assunto.”

O descaso generalizado, nota Jessica, é agravado pela dificuldade em aceder a informação credível e desmistificada. “É frustrante estar a ter o trabalho de pesquisa de recursos e informações em fóruns online, perguntar ao conhecido do conhecido, quando devia ser uma coisa dada”.

Esta mãe guineense reforça que os seus meus maiores desafios “sempre foram com profissionais de saúde e de educação”, que nem sempre sabem o que é melhor para o filho, revelando dificuldades em vê-lo como indivíduo. “É fácil para quem está de fora tentar impingir estratégias a uma criança autista baseado em livros e estatísticas, mas o que funciona para uma criança pode não funcionar para outra. Cabe-nos a nós encontrar, num espectro amplo e muito pouco conhecido, o que funciona”, defende, enquanto partilha uma das suas maiores satisfações. “Alegra-me imenso ver o meu filho aprender coisas e viver experiências novas”.

 

A necessidade de olhar para cada caso é igualmente destacada por Marta: “Ambos tivemos que nos reajustar às circunstâncias”, relata, três anos após o diagnóstico do filho, hoje com 8 anos.

“Quando ele tinha 3 anos, eu sabia que ele era diferente, mas não sabia que era autista. Percebi que o comportamento dele tinha mudado ao longo do tempo: ele evitava as pessoas e era mais tímido que o habitual. No começo, ainda pensei que lhe “passaria”, mas dois anos depois, a creche contactou-me e sugeriu uma avaliação do espectro de Autismo”. Ao diagnóstico seguiram-se várias consultas, e a consciência da importância de um reconhecimento atempado da condição, por forma a não comprometer o desenvolvimento educacional e manchar permanentemente a sua trajetória académica.

“A assistente social providenciada pela escola forneceu-nos o melhor cuidado e apoio. Sou muito grata porque ela deu-me opções para cuidar do meu filho, bem como as ferramentas para me ver como uma mãe próspera. Eu sinto que mesmo que tu não tenhas noção, deverias ser capaz de ouvir e aprender, mas o pai dele e a minha mãe não fizeram isso”, lamenta. “Isso dificultou muito o processo, porque morávamos com ela e ela não implementou as mesmas rotinas que eu. Se ela me tivesse apoiado desde o início, as coisas seriam mais fáceis”, admite, adiantando que a situação mudou. “Ela agora é maravilhosa. Estava numa jornada de negação. Mas no final do dia, todos nós precisámos de nos adaptar.”

Apoio aos pais

A angolana chama igualmente a atenção para a falta de consciencialização do Estado, incapaz de dar resposta a muitos dos desafios e à falta de apoio que a comunidade negra enfrenta. “Sinto que nem todos têm a mesma sorte e, infelizmente, os pais precisam de muito mais apoio em relação às deficiências”, diz Marta.

Embora as experiências de Marta e Jessica tenha sido um pouco diferentes, elas revelam que uma intervenção antecipada é fundamental para garantir o melhor atendimento possível para as crianças, algo que, infelizmente, não acontece na maioria das vezes.

“Agradeço a intervenção antecipada dos profissionais, porque sei que muita gente não tem esses mesmos recursos disponíveis. Muitas vezes perguntam-me como consegui esse apoio, mas reconheço que tive/tenho muita sorte”.

A partir das suas experiências, as duas mães partilham conselhos para pais que começaram agora nesta jornada. “No início pensamos sempre que estamos sozinhos e que mais ninguém nos percebe, mas esse pensamento é completamente falso. O meu conselho para os pais é que saiam mais de casa com a criança, façam actividades de que ela goste e falem com outros pais. Somos muitos na mesma situação”, diz Jessica. Já Marta sugere: “Enlouqueçam e chorem, se quiserem. Não dêem ouvidos a quem não é especialista e coloquem as pessoas no seu lugar, se necessário. Vai ser difícil e cansativo, mas vocês conseguem! Não tenham medo de pedir ajuda aos outros. Não tenham vergonha, e a vida será mais suave, acreditem!”

Caso se encontrem nesta situação, podem obter suporte entrando em contato com:

 

Vencer Autismo

Tel: +351 22 0931390 | 914279669

E-mail: info@vencerautismo.org

Website: https://vencerautismo.org/

 

Apoio e Inclusão ao Autista

Tel: +351 936 859 219 | +351 253 627 749

E-mail: aia@aia.org.pt

Website: https://www.aia.org.pt/contact

 

Associação Portuguesa Para as Perturbações Do Desenvolvimento e Autismo

 

Tel: + 351 21 361 62 50

 

E-mail: info@appda-lisboa.org.pt

 

*Saiba mais sobre a autora neste artigo