Justiça ao serviço de “uma estratégia política de normalização do racismo”

Já depois de termos subscrito e divulgado a Carta Aberta “Criminalizar Vidas Negras para Absolver o Sistema” – em que se contesta a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa de julgar Cláudia Simões por alegadas agressões ao agente da PSP Carlos Canha que, em Janeiro de 2020, a atacou violentamente –, recebemos a notícia de que o juiz Carlos Alexandre vai ser testemunha abonatória desse polícia. Este desenvolvimento, nota o SOS Racismo em comunicado, “denuncia e sublinha a normatividade com que a agressão é tratada, com todas as consequências que daí temos visto decorrerem: a apologia da ideologia neonazi, fascista, nacionalista, racista e xenófoba”. Aliás, conforme também se assinala nesse documento publicado na passada sexta-feira, 17 – e que o Afrolink divulga agora na íntegra –, “este mesmo Juiz Carlos Alexandre considera haver lugar à “defesa da honra” de Mário Machado, tendo decidido levar a julgamento o militante anti-racista, Mamadou Ba, na sequência de uma queixa-crime apresentada pelo cadastrado nazi. “Pode o magistrado invocar o direito para justificar os seus posicionamentos e atos”, observa o SOS Racismo, lembrando que “nenhum preceito legal autoriza a legitimação do racismo”, que estamos a testemunhar.

por SOS Racismo

Mário Machado foi fundador e antigo dirigente da Frente Nacional, membro do grupo Hammerskins Portugal e fundador e dirigente do movimento nacionalista neonazi, Nova Ordem Social. Condenado a mais de 10 anos de prisão por diversos crimes, incluindo as ofensas à integridade física qualificada no contexto do ataque da noite de 10 de Junho de 1995, de que resultou o assassinato de Alcindo Monteiro. Foi ainda condenado por coação agravada, posse ilegal de armas, posse de arma proibida, crime de incitamento ao ódio e à violência, discriminação racial, difamação, sequestro e extorsão. Mas mais recentemente, beneficiou de uma surpreendente benesse que a justiça portuguesa resolveu conceder-lhe: o levantamento da medida de coação de TIR para “ir para a Ucrânia prestar ajuda humanitária”. A este propósito, Mário Machado anunciou publicamente a intenção de se juntar a um grupo de portugueses e viajar para se juntar a uma milícia de extrema-direita. Ao levantar a medida de coação a que era sujeito, o Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa outorgou a Mário Machado uma licença para matar, eficaz não fosse o regime ucraniano ter sido mais perspicaz do que a justiça portuguesa. Este militante neonazi é também hoje arguido num processo de incitamento ao ódio e violência contra mulheres de partidos de esquerda. É este o mesmo sujeito que apresentou uma queixa- crime por difamação contra Mamadou Ba. 

Carlos Canha é referido na investigação de jornalistas “Quando o Ódio Veste a Farda” (2022) fazendo parte de uma base de dados de 591 elementos das forças de segurança que, alegadamente, cometem crimes de ódio nas redes sociais. Este agente integrou o Corpo de Segurança Pessoal da PSP, tendo acompanhado o Juiz Carlos Alexandre durante vários anos. Em janeiro de 2020, Cláudia Simões foi por ele selvaticamente agredida, imobilizada e algemada, frente à sua filha, junto a uma paragem de autocarros, por esta não ter título de transporte. Foi ainda violentamente agredida dentro do carro-patrulha e na esquadra, à frente de dois agentes que nunca a socorreram e nada fizeram para pôr termo à violência a que estava a ser submetida. Numa primeira reação, o diretor nacional da PSP Magina da Silva, desvalorizou as agressões que Claúdia Simões sofreu, dizendo não ter visto “qualquer infração” no vídeo da detenção, mas “apenas um polícia a cumprir as suas obrigações e as normas que estão em vigor” na polícia. O facto de Cláudia Simões ter sido encontrada inconsciente, no exterior da esquadra da PSP, em Casal de São Brás, terá sido justificado com uma “queda”. É esta a mesma direção da PSP que emite um comunicado de imprensa descartando a “motivação racista” do assassinato de Bruno Candé. Apesar das bárbaras agressões a Cláudia Simões por Carlos Canha, a que o país inteiro assistiu, porque estão gravadas, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu pronunciar a vítima, Cláudia Simões, arguida pela alegada prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada na pessoa do referido agente da PSP. 

Carlos Alexandre é Magistrado, tendo sido responsável pelo Tribunal Central de Instrução Criminal, em Lisboa. Foi quem pronunciou para julgamento o militante antirracista, Mamadou Ba, na sequência da apresentação da queixa-crime pelo neonazi, Mário Machado, por difamação. Este mesmo Juiz Carlos Alexandre considera haver lugar à “defesa da honra” de Mário Machado, por este criminoso neonazi – que integrou ativamente e em posição de destaque o grupo que na noite de 10 de Junho de 1995 agrediu e perseguiu diversas pessoas negras, sem qualquer motivo a não ser racial – ter sido referido como um dos principais responsáveis pelo assassinato, nessa noite, de Alcindo Monteiro. O mesmo Carlos Alexandre aceitou ser testemunha abonatória, três anos depois das agressões a Claúdia Simões, do agente da PSP Carlos Canha, no processo em que este responde por elas. 

Confirma-se, pois, a crónica impunidade de agentes de autoridade responsáveis por crimes racistas. Que um agente da justiça como o Juiz Carlos Alexandre aceite depor como testemunha abonatória do agente agressor, Carlos Canha, denuncia e sublinha a normatividade com que a agressão é tratada, com todas as consequências que daí temos visto decorrerem: a apologia da ideologia neonazi, fascista, nacionalista, racista e xenófoba. 

Carlos Alexandre é o retrato de uma certa sociedade e de uma certa justiça que não nos cansaremos de denunciar e combater: enquanto premeia a defesa de honra de um declarado e nunca arrependido criminoso racista neonazi, leva a tribunal um defensor dos direitos humanos, ao mesmo tempo que abona a favor de um agressor, comprovadamente racista, de uma mulher negra indefesa. A forma célere como confirmou a acusação particular de um neonazi contra um militante antirracista negro e a sua provável anuência em abonar a favor de um agressor racista contra uma mulher negra, colocam Carlos Alexandre como protagonista de uma estratégia política de normalização do racismo e de banalização da violência dele decorrente. 

Pode o magistrado invocar o direito para justificar os seus posicionamentos e atos – o certo é que nenhum preceito legal autoriza a legitimação do racismo. 

SOS Racismo

17 de Fevereiro de 2023