Mudar de canal não basta, é urgente desligar a normalização da violência
por Paula Cardoso
De cada vez que a norma é questionada, quem dela mais se beneficia apressa-se a defendê-la e a protegê-la até ao limite do absurdo. Não estranha, por isso, que a TVI, especialista do sensacionalismo e da monetização de polémicas, apenas veja entretenimento onde há inequivocamente violência. Consigo mesmo imaginar as reacções de excitação da equipa de produção e da direcção ao visionar as cenas que, nos últimos dias, espectadores e não espectadores do Big Brother acabaram por acompanhar.
No centro da acção vemos um homem usar da violência contra uma mulher, num contexto de aparente intimidade: ele segura-a com força, chega a agarrá-la pelo pescoço e espeta-lhe um beijo.
“É do calor do momento”, gritam uns, “nunca viveram uma relação com tanta paixão”, apregoam outros, e, como é típico nestas ocasiões, também não falta quem, tendo de julgar, opte por apontar o dedo à vítima e não ao agressor. Afinal “se ela não se queixa, quem somos nós para meter o bedelho?”.
Em cada uma das reacções acima enumeradas, acomoda-se a normalização da violência, e expressa-se uma profunda ignorância sobre o ciclo da violência doméstica: o facto de a vítima não se queixar, não significa que não existe fundamento para o fazer. O silêncio significa muitas vezes que a vítima tem medo de confrontar o agressor e, não raras vezes, que vive sob um tal estado de manipulação que nem sequer consegue perceber que está a ser agredida.
Isto não é ficção, é a mais crua realidade, e não desaparece por mudarmos de canal, ou por ignorarmos ver. Aliás, não foi por acaso que a violência doméstica passou a crime público: é reconhecido que o ónus da denúncia não deve nem pode ficar apenas do lado da vítima. Todos podemos e devemos denunciar, em vez de embarcarmos em jogadas de entretenimento baseadas em adivinhações.
Pouco me importa se ela está a jogar, não quero saber se ele é um apaixonado arrebatado que nunca teve a intenção de a agredir psicológica nem fisicamente, estou-me a borrifar para todo e qualquer exercício de especulação que se possa fazer sobre o assunto.
As imagens que me chegaram são inequívocas. Não preciso de mais nada para enxergar a violência que elas contêm. Nem eu, nem a Comissão para a Cidadania e igualdade de Género (CIG), que apresentou uma denúncia junto do Ministério Público sobre os factos ocorridos no Big Brother.
A CIG informou ainda que, “no cumprimento das suas competências, notificou a TVI no sentido de que esta estação televisiva tome de imediato as necessárias diligencias no sentido de pôr termo a esta situação, suscetível de configurar a prática de crime público de violência doméstica, na forma psicológica e física”.
Apesar do certeiro posicionamento da CIG, divulgado no último domingo, 13, no mesmo dia, na habitual gala semanal do Big Brother, a TVI não só perdeu mais uma oportunidade de repudiar as cenas de violência, como a sua directora de entretenimento e ficção invocou um pretenso dever de imparcialidade. Como se fosse defensável manter imparcialidade diante da criminalidade.
Vale lembrar, a propósito, as sábias declarações de Desmond Tutu: “Se ficarmos neutros perante uma injustiça, escolhemos o lado do opressor”.
Eu escolho a Justiça, e nela, a violência doméstica é crime.
A reflexão continua mais logo, na segunda parte d’ O Lado Negro da Força.