Mulher, negra e lésbica – as lutas
da primeira jornalista portuguesa

“Um povo sem o conhecimento da sua história, origem e cultura é como uma árvore sem raízes”, escreveu o jamaicano Marcus Garvey, um dos ícones maiores do movimento pan-africano. Retomamos aqui o seu pensamento para enquadrar as linhas que se seguem. Com actualização semanal, darão a conhecer, de forma sucinta, figuras e episódios que fazem parte do legado negro. Virgínia Quaresma, primeira mulher a deixar assinatura no Jornalismo em Portugal, é a senhora que se segue.

por Paula Cardoso

“Estranha-se o seu esquecimento”, escrevia o historiador António Araújo, em Novembro de 2018, num artigo de opinião publicado no Diário de Notícias.

Intitulado “Virgínia, a primeira jornalista portuguesa”, o texto documenta episódios que marcaram a vida da pioneira, deixando, porém, de fora duas dimensões que ajudam a enquadrar o dito “esquecimento”: a pertença étnica e a orientação sexual.

Mulher (condição que por si só a empurrava para um lugar marginal), e também negra (a sua ascendência permanece pouco conhecida)  e lésbica (nunca escondeu as relações), Virgínia Sofia Guerra Quaresma carregava consigo o peso de múltiplas discriminações.

Não surpreende, por isso, que a luta por igualdade tenha sido outra das assinaturas do seu legado.

“Virgínia assumiu-se mais como feminista do que como republicana, mas discursou na Assembleia Geral da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas de 26-10-1910, assembleia que aprovou o caderno reivindicativo das feministas a apresentar a Afonso Costa [um dos artífices da implantação da República, e então ministro da Justiça]”, assinala Maria Augusta Seixas, num texto publicado na página do Centro de Documentação e Arquivo Feminista Elina Guimarães.

Profunda conhecedora da vida da jornalista, Maria Augusta dedicou-lhe a sua dissertação de Mestrado em Comunicação e Jornalismo, apresentada na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

Na investigação, de 2004, intitulada “Virgínia Quaresma (1882-1973): A primeira jornalista portuguesa”, a autora destaca, entre outros dados biográficos, o facto de Virgínia ter sido uma das primeiras licenciadas no país, ao concluir, em 1906/07, o Curso Superior de Letras.

A entrada no Jornalismo, segundo o mesmo trabalho académico, deu-se após a morte do pai, em 1906, com o ingresso em “O Jornal da Noite”.

Lutar pela vida através do Jornalismo

“Attrahiu-me a vida intensa do jornal, a febre da reportagem, toda esta emoção que só os profissionais podem sentir e comprehender. O meu gesto, se assim lhe posso chamar, causou um movimento de surpresa. Bem me lembro… Não faltava quem abrisse os olhos, rasgados de espanto, como que a perguntar se também as mulheres podiam ser jornalistas… […] Todos sabiam que não tinha entrado no jornalismo arrastada por sentimentos de vaidade, mas simplesmente por inclinação e ainda pela forte necessidade da lucta pela vida (…)”.

O testemunho de Virgínia, extraído de uma entrevista concedida em 1912 ao jornal “A Capital” – e reproduzido em “Para uma História do Jornalismo em Portugal” –, evidencia o compromisso activista.

Ser jornalista era, aos olhos da pioneira, “uma forma de intervenção na causa pública”, realça  Isabel Lousada, investigadora do CICS.NOVA da NOVA FCSH, no artigo “Feminismo en la voz de una periodista feminista”, de 2014.

Movida por essa “forte necessidade da lucta pela vida”, conforme disse n’ “A Capital” – uma das publicações de referência que fazem parte do seu currículo –, Virgínia Quaresma “escreveu, opinou, polemizou em nome da causa feminista e pela igualdade de direitos”, salienta Maria Augusta Seixas.

A par do jornal “A Capital”, a trajectória da jornalista inclui passagens, entre outras publicações pelo “O Século”, “O Mundo” e pelas revistas “Sociedade Futura” e “Alma Feminina”.

“O voto, o direito ao trabalho, o acesso às mesmas profissões que os homens, à administração dos bens, ao divórcio, foram temas dominantes dos seus artigos e das páginas dos jornais onde colaborou”, nota Maria Augusta.

A notoriedade da sua intervenção também teve expressão no Brasil, país onde fez a cobertura de um trágico e muito mediático caso de violência doméstica – o femicídio de Anita Levy às mãos do marido, o poeta João Barreto.

Empresária com veia publicitária

No regresso a Portugal, Virgínia Quaresma juntou aos inúmeros créditos o de empresária.

“O seu retorno a Lisboa, em plena Grande Guerra, corresponde a um período de grandes dificuldades financeiras para os jornais nacionais. Contexto esse que terá motivado novo pioneirismo de Quaresma, que foi a responsável pela introdução de um novo tipo de publicidade: a publicidade redigida. Tratava-se de textos bem redigidos e descritivos sobre empresas que pagavam por este novo tipo de presença nos jornais”, lê-se em “Para uma História do Jornalismo em Portugal”.

O mesmo livro sublinha que a orientação comercial conduziu Virgínia para o mundo da publicidade, onde assumiu responsabilidades de empresária.

Primeiro “com a empresa Atlântida – Escriptorio de publicidade em todos os jornaes nacionais e estrangeiros”, nascida em 1918, e, no ano seguinte “com o Escriptorio de Publicidade Latino-Americano”.

Apesar dos múltiplos voos – extensivos ao trabalho de professora e ainda à tentativa negada de ingressar na carreira diplomática –, é no Jornalismo que está fincada a sua identidade, reconhecida, em 1941, nas palavras do jornalista e historiador Rocha Martins (1879-1952).

“Virgínia Quaresma, a primeira senhora que exerceu a profissão de jornalista em Portugal na acepção que modernamente lhe compete. As suas reportagens foram notáveis. A ilustre escritora D. Maria Amália Vaz de Carvalho, Guiomar Torrezão e Alice Pestana (Caiel) tinham sido colaboradoras de periódicos, mas talvez nunca tivessem entrado numa redacção para escreverem, à banca do trabalho, almas tiras de papel, os ‘linguados’, como lhe chamam os jornalistas. Virgínia Quaresma era superior na reportagem (…)”.

O atestado de excelência, que encontramos em “Para uma História do Jornalismo em Portugal”, nunca foi fonte de deslumbramento na vida da activista, a julgar pelas suas próprias palavras . “Fui apenas uma redactora que amava o jornalismo e que vivia para a reportagem”.

Viveu 90 anos, e merece ser lembrada. Sem estranhezas.