Na escola da vida de Maria João, quem tudo faz, tudo aprende 

Chefe de turno no ramo da restauração, onde se iniciou há cerca de oito anos, Maria João Santos, de 33 anos, trocou a escola pelo trabalho, quando o primeiro salário lhe mostrou um caminho de autonomia financeira. A escolha trouxe-lhe experiência em áreas tão díspares quanto a das limpezas e a da segurança, e permitiu-lhe perceber que é capaz de fazer tudo. Até de voltar a estudar. Porque, na vida de Maria, vale tudo menos ficar parada.

por Paula Cardoso

Um emprego numa loja de roupa para começar. Depois, a passagem por um call center e a formação como segurança. Pelo caminho, o apoio a uma pessoa idosa e uns biscates ocasionais nas limpezas. E, por fim, a entrada num mundo que desde a primeira experiência profissional fez por evitar. 

Dizia sempre: eu não vou trabalhar em restauração, porque ouvia histórias horríveis de quem estava no meio”, conta Maria João Santos, hoje em dia ‘embaixadora’ da velha máxima: “nunca digas nunca”.

Impressionada com os relatos de amigos e conhecidos, sobre a exploração salarial e discriminação dos trabalhadores racializados em restaurantes, João, como prefere ser chamada, tem agora, ela própria, um testemunho para partilhar.

“Fui avisada de que os negros e os colaboradores estrangeiros eram todos enfiados na cozinha, enquanto na frente de loja ficavam só os branquinhos e mais clarinhos, porque supostamente eram esses que tinham mais apresentação”.

Apesar de reconhecer que a lógica separatista sobressai em muitas empresas do sector, João sublinha que encontrou um ambiente laboral que oferece oportunidades de progressão a todos os funcionários.

“Entrei como colaboradora, e passados três meses deram-me uma proposta para ser chefe de turno”, adianta, acrescentando que na realidade profissional que conhece as discriminações chegam dos clientes.

Discriminação vs poder de encaixe

Há quem se recuse a fazer o pedido de refeição a um negro, por exemplo, quem duvide da competência de um responsável negro para dar seguimento a uma reclamação, e também quem não se coíba de enviar emails para os escritórios, a contestar a presença “excessiva” de negros no atendimento ao público.

“Trabalhar na restauração fez com eu ganhasse poder de encaixe. Ensinou-me a ter calma em muitas situações.”

A aprendizagem, que não deve ser confundida com silenciamento – “se tiver de fazer queixa de algum cliente, faço” –, dura há tanto tempo que João pensa cada vez mais na próxima mudança.

“Comecei como colaboradora, estou como chefe de turno, também passei pela fase de gerente de loja, e o cargo acima seria o de supervisora. Mas sei que não quero isso. Neste momento, só procuro alguma coisa que me volte a desafiar”.

Qualquer que seja a escolha, a curiosidade promete aguçar o engenho. “Gosto de ir questionando, porque dessa forma aprendo a fazer. Não quero ficar agarrada às funções para as quais me contrataram, não só porque acho importante saber mais, mas também porque, de hoje para amanhã, pode ser preciso fazer outra coisa, e, assim, já fico preparada”.

Por exemplo, assinala João, uma coisa é ter a informação de que um hambúrguer bem passado demora 12 minutos a ser cozinhado, outra é acompanhar cada etapa e perceber, na prática, que o pedido pode exigir mais tempo de confecção.

“Cada minuto conta”, realça, consciente de que a atitude pró-activa foi determinante para a sua progressão. “Estou sempre disposta a aprender mais qualquer coisinha. Aliás, muitas vezes pedi: deixem-me tentar isto ou aquilo, porque sei que sou capaz”.

Fazer tudo, sem medo de arriscar

Desde os 18 anos a tentar e a conseguir, João recorda que trocou a escola pelo trabalho quando começou a ganhar dinheiro. “Se fosse pelo meu pai, continuava a estudar, mas cheguei a uma fase em que não queria nada com a escola, e também não queria chatear os meus pais de cada vez que queria comprar as minhas coisas”.

Já na pele de trabalhadora, a hoje chefe de turno tornou-se uma apologista da polivalência.

“É assim que a gente aprende. Se me focar somente num trabalho, que eu considero ideal etc, o meu receio de arriscar noutra área vai ser muito maior. Gosto desta possibilidade de fazer tudo”. 

Neste arregaçar de mangas, que contempla mesmo a hipótese de um regresso aos estudos – “há aprendizagens que só a vida não dá” –, sobressai a força da herança familiar.

“Sinto necessidade de me mexer, porque de outra forma parece que o tempo não passa, parece que não estou a fazer nada. Acho que isto vem muito da minha mãe, porque também é uma pessoa que não pára”.

Filha de doméstica, que sempre se revezou em casas particulares – “de segunda a segunda, sem folgas” –, a chefe de turno reconhece que é preciso quebrar a lógica do trabalho ininterrupto, destituído de direitos, mas sublinha que nem sempre é fácil.

Portuguesa de nascimento e documento

Desde logo, por causa de questões documentais. Embora tenha nascido em Portugal, há 33 anos, a única nacionalidade que João tem é a da sua ascendência cabo-verdiana.

“Sempre me recusei a pagar mais de 300 euros por algo que considero ser um direito. Se nasci cá, se contribuo para o país, porque é que tenho de andar no SEF [Serviço de Estrangeiros e Fronteiras] como se pedisse um favor? Ainda por cima, meter os papéis nunca deu nenhuma garantia”, lamenta a luso-cabo-verdiana, lembrando que muitos pedidos são recusados.

A situação está em vias de mudar, com a entrada em vigor da nova Lei da Nacionalidade, mas João não retira daí nenhum benefício profissional imediato.

“Sempre trabalhei com a minha documentação de cabo-verdiana e, nos meus locais de trabalho, nunca me apercebi de diferenças salariais em função disso”, diz, reconhecendo, contudo, uma pressão acrescida por causa da documentação.

“Temos de ter o cuidado de ter tudo em dia, não nos podemos dar ao luxo de vacilar, temos de tratar as coisas a tempo e a horas”.

Foi assim com Maria João e com os quatro irmãos, foi assim com os pais, mas já não é assim com a sua primogénita Carolina, nascida no último mês de Junho. Portuguesa de nascimento, portuguesa no documento e, espera João, portuguesa também de pleno reconhecimento.