Na metamorfose viajante de Rodrigo, a arte é uma forma de cura decolonial

Os estudos afastaram Rodrigo Saturnino de casa dos pais, quando tinha apenas 10 anos. Aos 14, já estava a viver com dois amigos, e, perto dos 20, liderava dezenas de jovens numa igreja. A jornada espiritual prosseguiu na licenciatura em Teologia, a que juntou outra em Comunicação, área na qual se profissionalizou, antes de se mudar para Portugal. Tinha 30 anos, hoje tem 44, e, pelo caminho, fez um mestrado e um doutoramento, mas deixou de se reconhecer. Entretanto, foi forçado a afirmar a sua identidade brasileira, iniciou uma viagem de resgate da ancestralidade africana, e reencontrou-se na celebração da sua sexualidade. Agora movimenta-se entre o mundo académico e o universo artístico, sem perder as raízes da morada que deixou precocemente: Jequitibá, no estado de Minas Gerais.

por Paula Cardoso

“Gente, onde é que você estava?!”. A pergunta, entoada de admiração e curiosidade, encontrou Rodrigo Saturnino já na viragem da primeira década em Portugal.

“Eu penso nisso até hoje: Onde eu estava?”.

A resposta deambula entre “o choque das diferenças culturais”, o confronto com o “rótulo de brasileiro” e as suas múltiplas discriminações, a “vivência solitária do ponto de vista da sexualidade”, e, acima de tudo, o peso da sobrevivência.

“Tudo isso retira muito o seu momento de reflexão. Você não pára para pensar. Todo o tempo é para trabalhar, cumprir o objectivo que é estudar, entregar as provas e demonstrar para os portugueses que você é inteligente, que você também pode estar na academia. Então eu estava muito envolvido com isso”.

Imerso num dia-a-dia de provações, Rodrigo reconhece que durante anos “estava bloqueado, completamente alienado dessas questões colonialistas e racistas da sociedade portuguesa”, processo que sofreu uma guinada nos últimos cinco anos.

“No final do doutorado – em 2015, por aí –, quando eu já tinha alguma estabilidade financeira, pude parar e ter a capacidade de reflectir sobre esses temas, e entender que eu estava sendo violentado, mas não conseguia perceber em que medida”.

Branco? Preto? Cabrito!

Doutorado em Sociologia e mestre em Comunicação e Cultura, graus académicos obtidos em Portugal, o brasileiro conta que quando chegou a Lisboa, há 14 anos, as microagressões xenófobas e racistas eram tão corriqueiras quanto desconcertantes.

“Era uma coisa muito naturalizada naquela época, e eu, que não era activista, não tinha nenhuma ferramenta intelectual para argumentar em relação aos temas do colonialismo e do racismo, nem das questões sexuais do género da minha identidade gay. Não tinha nenhuma capacidade argumentativa porque não tinha uma identidade forte o suficiente”.
A consciência de que a vida em Portugal forçava uma reconstrução identitária – “no Brasil, a minha identidade estava pronta, pelo menos teoricamente” –, abriu também caminho para uma busca ancestral.

 

“Comecei a querer afirmar mais a minha identidade negra, a minha relação com a família da minha mãe, a deixar que os marcadores da minha identidade negra aparecessem mais”, explica, introduzindo a questão da mesticidade na conversa. “Sei que, se raspar o cabelo e se não tomar sol, ainda consigo ter alguma passabilidade, porque fica aquela dúvida: ele é branco, ele é preto?”.

Em Portugal, Rodrigo percebeu que também pode ser cabrito. “Me chamaram isso uma vez e eu falei: Oi? O que é isso?”.

A categoria brasileiro sobrepõe-se a todas as outras

As sucessivas perplexidades reforçaram mais e mais a necessidade de enraizamento. “Tive contacto com racismo no Brasil, é óbvio, também com a homofobia, mas o que tive aqui foi mais forte. Aqui eu fui mais confrontado com tudo isso, no sentido de ter de afirmar uma identidade, de estar sempre sendo convocado para isso”.

Nesse exercício permanente de desconstrução e reconstrução, o investigador deparou-se com a constatação de que “a categoria brasileiro se sobrepõe a outras identidades” que atravessam a sua existência.

Desde logo na já mencionada pressão da Academia, ambiente de iniciação à realidade portuguesa. “Primeiro eu tive de lidar com uma certa rejeição, com alguma dificuldade de credibilidade, em que eu fui questionado sobre as minhas capacidades cognitivas”, conta Rodrigo, actualmente a fazer um Pós-Doutoramento no Centro de Estudos da Comunicação e Sociedade do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho.

Além das opressões sofridas no meio académico – “dentro da faculdade, era super normal ter pessoas falando que preferiam ler os livros noutro idioma do que traduzidos para o português do Brasil” –, as discriminações do quotidiano avolumaram desconfortos.

“Cheguei a ter pessoas dizendo, na rua, para falar em inglês com elas porque não percebiam o que eu falava”.

Sem espaço para celebrar a identidade sexual

As sucessivas experiências de exclusão obrigaram a uma ruptura com um importante passado de autoexaltação. “Eu cheguei aqui e não pude celebrar a minha homossexualidade, como estava fazendo no Brasil. Tive de parar, para poder afirmar a identidade brasileira, algo que sabia que tinha mas não sabia que tinha de afirmar”.

O resultado explica a desaparição de Rodrigo, bem abreviada na pergunta: “Gente, onde é que você estava?!”.

“Cheguei aqui e senti que eu tinha me transformado noutra pessoa”, admite o investigador, ainda a digerir cerca de uma década de alienação.

“Já não me reconhecia. Tinha perdido aquela pessoa super celebrativa da minha sexualidade que eu estava vivendo no Brasil”.

A restituição identitária ganha expressão artística na história de Rodrigo, que, através do desenho e da pintura, procura dar formas e cores às dores de crescimento de uma firme costela de migrante.

Estudos de emancipação

Nascido há 44 anos em Jequitibá, localidade do estado brasileiro de Minas Gerais, o Mestre em Comunicação e Doutor em Sociologia saiu precocemente de casa para estudar.

“Isso é uma prática muito comum no Brasil, a migração dos estudantes, que deixam suas vilas para ir estudar na capital. Foi isso que aconteceu comigo”, reconstitui, acrescentando que a sua terra natal tem pouco mais de 5.000 moradores.

Enviado pelos pais para Sete Lagoas, a cerca de 40 quilómetros de Jequitibá, Rodrigo, então com 10 anos, teve de se adaptar não apenas à distância familiar, mas também a um universo populacional muito maior, superior a 230 mil habitantes.

“Eu ficava em casa dos meus tios de segunda a sexta, e voltava para Jequitibá no final de semana, mas era muito doloroso. Lembro que chorava muito, muito, muito mesmo”.

Apesar de reconhecer que a decisão parental tinha como objectivo proporcionar uma melhor educação – porque “em Sete Lagoas estavam as melhores escolas” –, o investigador considera que uma mudança dessa natureza tem muitos impactos na vida de uma criança.

“Claro que teve seu lado bom, porque essa experiência me constituiu numa pessoa que hoje tem facilidade de migrar, mas perdi muitas referências, tive de me construir sozinho”.

Adolescência religiosa

Primeiro em Sete Lagoas, onde permaneceu até à entrada na Faculdade, Rodrigo seguiu depois para Belo Horizonte, destino de duas licenciaturas: Teologia e Comunicação Social.

“Talvez por ser um menino do interior, por ter uma origem assim mais familiar, fui buscando entender os meus problemas na adolescência através das questões da espiritualidade”, recorda, acrescentando que o ambiente religioso, apesar das proibições, foi fundamental para começar a viver a sexualidade gay.

“É super interessante perceber como as pessoas no Brasil, principalmente gays negros, têm uma história de protestantismo na vida”, nota o antigo devoto evangélico, de volta aos primórdios da iniciação religiosa.

“Entrei na igreja acho que com 18, 17 anos, e depois fiquei lá uns 8, 9 anos. Foi maravilhoso, muito acolhedor, um momento de conhecer questões de afectividade com as pessoas”.

Mais do que encontrar suporte para as próprias angústias existenciais, Rodrigo assumiu a responsabilidade de orientar outros fiéis. “Fui líder de grupos de jovens, mais ou menos 70 pessoas, com uns 12, 13 anos, e ainda hoje tenho muitos amigos e amigas dessa época, gente que me admira muito por os ter ajudado”.

A independência precoce

A jornada espiritual, que passou também por outras religiões – nomeadamente afro-brasileiras e centros espíritas – explica a primeira escolha académica.

“Acho que isso tem que ver com a minha história de vida, porque fui retirado de casa num momento muito importante da minha infância”.

Embora não guarde ressentimentos desse passado – “tratei das coisas de um modo positivo para poder aprender com tudo” –, Rodrigo nota que na altura da adolescência também viveu processos de revolta. Aliás, logo aos 14 anos, a vontade de libertação da supervisão adulta falou mais alto: saiu de casa dos tios, para viver com dois amigos.

“Já tinha essa ideia de independência, porque tive de me criar, tive de me virar sozinho”, clarifica, acrescentando que a decisão foi bem acolhida pela família.

“A política dos meus pais é muito essa: ‘A gente aceita o que você faz, por isso se você acredita, vai’. Claro que tem um lado bonito, bem liberal, mas também pode parecer uma questão de desresponsabilização – ‘menos um para a gente ter que tomar conta’”.

Especialização no digital

O suporte familiar verificado na mudança adolescente voltou a ser determinante para a mudança transatlântica.

Já depois de juntar a licenciatura em Teologia à de Comunicação Social – ponto de partida para experiências jornalísticas na imprensa escrita e na televisão, e para a abertura de uma empresa no ramo –, Rodrigo sentiu necessidade de novos caminhos.

“Bateu de novo a coisa do migrante”, diz, acrescentando que o regresso à universidade acabou por lhe carimbar o passaporte para Portugal.

“Gosto de estudar, gosto de escrever, e é interessante ver que continuo na escrita, porque a academia é feita disso: ainda é pela escrita que a gente demonstra qualquer coisa, principalmente nas ciências sociais, que é a minha área”.

 

Especializado no mundo digital – “estudo as relações que se travam através das tecnologias de comunicação” –, Rodrigo tem vindo a agregar, ainda que sem profundidade académica, recortes étnico-raciais ao seu trabalho.

“Eu me identifico com o movimento académico decolonial, mas sei que não tenho a capacidade ainda de participar academicamente. Mas vou-me preparar para isso no futuro, porque a ligação da tecnologia e racismo é um tema muito importante, que tem sido debatido não por muitas pessoas”.

A arte que cura

Até lá, Rodrigo encontra na arte o espaço primordial para soltar as amarras de uma herança imperialista. “Estou usando todo esse passado, todas as opressões, para expressar minha criatividade”.

O resultado, à vista e à venda numa galeria online, expande-se com força terapêutica. “Eu uso as questões que confrontaram a minha identidade, produzindo algum tipo de arte, para me ajudar a curar”.

A auto-medicação passa por, por exemplo, por sanar “ideias sobre masculinidade negra, sobre corpos padronizados, sobre a violência dos homossexuais brancos sobre o corpo do negro, e também sobre o corpo do brasileiro”. Tudo com três princípios activos: ocupar espaços historicamente inacessíveis, confrontar opressões coloniais, e celebrar identidades nas suas múltiplas intersecções. Sejam elas quais forem.