“Não conseguimos respirar!” – o grito por um sector artístico anti-racista

Titulada em alusão às últimas palavras de George Floyd, a peça de dança “I Can’t Breathe”, financiada com dinheiros públicos, pretendia expor situações de violência racista, mas tornou-se, ela própria, um espectáculo de discriminação contra os bailarinos racializados que compunham o elenco – três afrodescendentes e dois asiáticos. “Entre os dias 28 de Março e 17 de Abril do presente ano, estes cinco bailarinos foram expostos a sistemáticas situações de racismo durante os ensaios”, revela-se numa Carta Aberta, que denuncia o “ambiente tóxico e racista” promovido pela coreógrafa, acusada de disparar palavras de ódio sem qualquer moderação. Ficam dois exemplos: “Eu tenho cabelo normal”, frase proferida para inferiorizar o cabelo afro; e “Eu devia usar um fato de polícia e meter o joelho no pescoço de um de vocês, e assim a peça já estava feita”, declaração utilizada num debate sobre a complexidade de um momento coreográfico específico. Para que esses e outros abusos racistas não passem incólumes nem se repitam, o Afrolink subscreve e publica na íntegra a “Carta Aberta por um sector artístico anti-racista em Portugal”, apoiada por cerca de 130 subscritores, individuais e colectivos. Porque – nunca é demais repetir – as nossas vidas importam!

“Não Conseguimos Respirar!” –  Carta Aberta por um sector artístico anti-racista em Portugal

A instrumentalização, tokenismo e exotização de corpos não-brancos no sector artístico é recorrente e resulta de continuidades históricas coloniais e exclusão demográfica que constroem a ideia de outros “não-humanos”, desprovidos de singularidade e sensibilidade. O racismo adquire proporções específicas no mundo das artes performativas, onde corpos racializados tendem a ser vistos como mercadoria e a arte é dissociada do seu papel político, ético e pedagógico.

Situações recentes nos processos criativos de projectos financiados com verba pública, nomeadamente pela Direcção-Geral das Artes, supostamente focados no tema do racismo em Portugal, têm sido flagrantes para a reactivação de traumas colectivos dos envolvidos por darem lugar a práticas racistas, irresponsabilidade social e negligência emocional por parte de direcções alienadas do debate anti-racista actual.

Denunciamos enfaticamente o caso do projecto I Can’t Breathe (peça de dança estreada com outro nome e com um novo cast), cujo título cita a última frase proferida por George Floyd, no momento da sua morte, tornando-se num emblema mundial que alertou para o racismo estrutural contra os negros e, canonicamente, contra todas as minorias raciais no ocidente. O projecto objectivava abordar precisamente o tema do racismo, expondo situações de violência discriminativas, inspiradas nas vivências de cinco bailarinos racializados (três afrodescendentes e dois asiáticos) escolhidos para este projecto. No entanto, entre os dias 28 de março e 17 de abril do presente ano, estes cinco bailarinos foram expostos a sistemáticas situações de racismo durante os ensaios, que culminou na desintegração quase total do elenco original (em excepção à coreógrafa que integrava o elenco como bailarina).

Segundo os testemunhos dos bailarinos, a coreógrafa promoveu um ambiente tóxico e racista durante toda a criação, com o constante uso de linguagem e sugestões racistas, nomeadamente: «[…] como samurais» – comparação leviana para exemplificar a postura calma que os intérpretes deviam ter em cena; «Eu devia usar um fato de polícia e meter o joelho no pescoço de um de vocês, e assim a peça já estava feita.» – expressão irónica utilizada num debate sobre a complexidade de um determinado momento coreográfico; «Eu tenho cabelo normal» – utilização de adjectivo inapropriado para comparar ao cabelo afro; ou «[…] ter os vossos corpos mortos no chão, então eu vou entrar e vocês vão voltar à vida» – inconsciência da potencial referência ao conceito do “branco salvador”.

As circunstâncias atingiram uma escala de agravamento inesperado, quando a coreógrafa praticou difamação danosa de índole racista, assim como alegou fazer uma queixa-crime formal contra uma das bailarinas, advertindo-a que seria brevemente contactada pelo seu advogado. Fez afirmações como se acreditasse ser vítima de “racismo estrutural reverso” e de “activismo ignorante”, comprovando o seu desconhecimento sobre a forma como o racismo estrutural opera, assim como a ausência de uma consciência crítica sobre os seus privilégios enquanto mulher branca e a falta de noção do significado de “lugar de fala” no que toca a experiências de opressão.

Neste tempo actual em que as assimetrias raciais estão comprovadas em Portugal e decorre um Plano Nacional de Combate ao Racismo, paralelizado com a Década Internacional de Afrodescendentes decretada pela ONU, urge denunciarmos práticas racistas que contrariam a construção de uma sociedade mais justa e democrática. Uma sociedade civil em que todos os actores relevantes devem ser guiados pelo espírito de reconhecimento, justiça e reparação para tomar medidas eficazes que promovam a plena equidade social, condenando o racismo e a xenofobia.

Afirmamos o nosso posicionamento público e colectivo perante o racismo que atropela a nossa história comum e as nossas subjectividades. Denunciamos o racismo e reivindicamos um sector artístico seguro e digno, onde possamos respirar e falar. Um lugar genuinamente criativo onde os nossos pensamentos tenham espaço e que as cabeças que os concebem, não sejam colocadas a prémio através de políticas insuficientes e não pensadas.

Chamamos a atenção pública para que casos similares não voltem a acontecer no nosso meio social, artístico e profissional, porque as nossas vidas importam.

Por um sector artístico anti-racista em Portugal!

Subscritores individuais:

Noeli Kikuchi (Bailarina e coreógrafa)

David J. Amado (Cineasta, coreógrafo e professor de dança)

Nala Revlon (Bailarina e produtora)

Natacha Campos (Bailarina, actriz e criadora)

Wong Nok Wallace (Artista)

Ana Vaz (Bailarina, performer, professora, criadora)

Anna Vieira (Estudante)

André Loubet (Actor)

Andreia Marinho (Bailarina e criadora)

Andreia Alpuim (Bailarina)

André Cabral

Anaísa Lopes aka Piny (Coreógrafa e performer)

Ariel Hayun (Dance artist)

Allex Miranda (Actor, director/encenador, dramaturgo, roteirista )

Ana Tavares (Arquitecta)

Angela Guerreiro (Artista independente)

Anabela Rodrigues (Artista independente)

Ana Fernandes (Produtora, gestora e agente cultural

Beatriz Dias (Coreógrafa e performer)

Bernardo Santos (Designer)

Bruno Pinho (Músico e autor)

Cacá Otto Reuss (Bailarina e coreógrafa)

Carol Lamoglia (Circense)

Catharina Dahlkvist (Bailarina)

Catarina Marques (Bailarina e criadora)

Carla Costa Gomes (Artista, performer, empreendedora)

Constanza Givone (Performer criadora multidisciplinar)

Cláudia Galhós (Escritora e especialista em artes performativas)

Catarina Barbosa (Designer)

Carolina Carloto (Performer, intérprete e instrutora)

Carlota Lagido (Coreógrafa, bailarina e figurinista)

Cláudia Semedo (Actriz e encenadora)

Carolina Elis (Artista independente)

Cristiano Mourato (Animador 3D – cinema de animação)

Daniela Cruz (Criadora formadora e intérprete em dança contemporânea)

Daniel Mayrinck

Diego Bragà (Cineasta, música e encenador)

Diana Niepce (Bailarina e coreógrafa)

Di Candido aka DIDI, (Investigador, produtor, DJ, artista visual/multidisciplinar,)

Duarte Valadares (Performer)

Eliana Lou (Artista plástica, estudante)

Eva Nunes (Dançarina)

Fábio Nóbrega Vaz (Actor)

Fabiana Injai

Gabriel Flambo

Gabriela Simora

Gonçalo Pinela (Bailarino, coreógrafo, figurante)

Glória Moutinho (Contabilista)

Gisela Casimiro (Escritora e artista)

Gisela Ferreira (Performer)

Gessica Correia Borges (Comunicadora, investigadora, mestre em Estudos Africanos )

Helena Baronet (Performer e produtora executiva)

Inês Madeira Lopes (Compositora)

Ivana Duarte (Bailarina)

Íris De Brito (Gestora de projecto e coreógrafa)

Inês Costa (Bailarina, professora)

Inês Mendes (Artista plástica)

Jade Nunes (Estudante e freelance artist)

Jamille Chagas

Jeni Lage Barreto (Artista)

Jéssica Laís (Bailarina)

Joãozinho da Costa (Actor, bailarino, criador)

Joana Castro (Coreógrafa performer)

Joana Pajuelo (Comunicação e assessoria de imprensa)

Joana Pinto Cunha (Bailarina e criadora)

Joana Lopes (Bailarina)

Joana Pinto Cunha (Bailarina e criadora)

Josefa Pereira (Coreógrafa e performer independente)

José Neves (Percussionista)

João Oliveira (Bailarino, actor, criador)

Jordana Chaves Leitão (Pesquisadora audiovisual)

Lucas Reis, (Artista Independente)

Lucas Moraes (Bailarino)

Manuel Petiz (Actor)

Mara Nunes (Cantora, compositora, actriz)

Marta Sofia da Mota Moreira (Produtora cultural)

Miguel Sobral Curado (Músico, compositor e performer)

Mauro Costa (Actor)

Maurícia Barreira Neves (Artista)

Madalena Rato (Percussionista)

Maria Caetano (Performer e professora)

Maíra Zenun, (Artista Multidisciplinar, membre do INMUNE e da Nêga Filmes)

Melissa Rodrigues (Performer, arte-educadora e curadora independente)

Mélanie Ferreira (Bailarina)

Matheuse (Bailarino)

Nicolás Fabian (Designer Gráfico e Multimédia)

Nuno Teixeira (Actor)

Nuno Moutinho (Artista e criador)

Nádia Yracema (Artista Independente)

Pedro Barreiro (Artista e programador)

Paula Cardoso (Fundadora do projeto Afrolink e da associação ForçAfricana)

Raquel Lima (Investigadora, performer)

Rebeca Mateus Ramos de Campos (Bióloga / bailarina)

Rita Cássia Silva (Antropóloga, Artista Multidisciplinar, Activista de DH)

Ricardo Reis

Rodrigo Teixeira (Bailarino coreógrafo e director artístico da companhia PURGA.c)

Ruana Carolina (Produtora)

Rui Pinto (Percussionista e videógrafo)

Rodrigo Ribeiro Saturnino (ROD) (Sociólogo, artista e membro da Djass – Associação de Afrodescendentes)

Salomé Rodrigues (Bailarina e performer)

Sofia Portugal (Intérprete, bailarina e música)

Sérgio Noé Quintela (Bailarino e coreógrafo)

Sara Marita (Compositora e performer)

Silvia Real (Bailarina e coreógrafa)

Sofia Karol (Bailarina e coreógrafa)

Susana Domingos Gaspar (Bailarina e coreógrafa)

Tainá Lima

Tânia M. Guerreiro (Produtora)

Tânia Tomas (Artista)

Telma João Santos (Artista e investigadora)

​​Teresa Coutinho (Artista)

Tiago Campino (Crowd)

Vanessa Sanches (Gestora de projeto BANTUMEN)

Vânia Doutel Vaz (Intérprete e Criadora de Dança)

Vanessa Fernandes (Realizadora e performer)

Vanessa Vieira da Cunha (Bailarina)

Wura Morais (Bailarina)

 

Subscritores colectivos:

Associação ForçAfricana

Afrolink

Acção Cooperativista

Brigada Estudantil

BANTUMEN

Colectivo O Lado Negro da Força

União Negra das Artes (UNA)