No matriarcado de Patriarca, a cachupa tem fama e proveito presidencial

Chegou de navio a Lisboa, naquele que descreve como “o pior dia da vida”. Enfrentou humilhações e privações, trabalhou dois anos e meio sem uma única jornada de folga, mas nunca baixou os braços. Hoje Maria Patriarca é dona do restaurante Coqueiro, na Cova da Moura, onde a cachupa já fez as delícias dos Presidentes da República de Portugal e de Cabo Verde. Sirvam-se!

por Paula Cardoso

O entra e sai para almoços e jantares, celebrizados pela cachupa, movimenta a disputa por um pedido especial.

“Estou sempre a ouvir: ‘A próxima vez que vier cá, quero ver a minha fotografia ali’”, aponta Maria Patriarca, de foco voltado para a parede mais mediática do seu restaurante, O Coqueiro.

Ali cabem políticos, como os Presidentes da República de Cabo Verde e de Portugal, Jorge Carlos Fonseca e Marcelo Rebelo de Sousa, e também artistas, de que são exemplos o músico Dino d´ Santiago ou o actor e apresentador José Pedro de Vasconcelos.

A galeria de ilustres, onde se encontra ainda o clássico retrato de família, contraria imagens estereotipadas da Cova da Moura, demasiadas vezes apresentada como morada de violência e criminalidade.

Cozinheira de outra narrativa, em que o trabalho sempre foi o pão-nosso do seu dia-a-dia – tal como o é para a maioria dos vizinhos –, Maria habituou-se desde cedo a desafiar probabilidades.

“Éramos escravas autênticas, sem hora para deitar, mas sempre para levantar”

Nascida em 1955 na aldeia de Monte Joana, na Ilha cabo-verdiana de Santo Antão, a alma do Restaurante O Coqueiro parecia fadada para não vingar em Portugal.

“Chorava todos os dias, porque queria ir de volta para Cabo Verde”.

O regresso às emoções da chegada a Lisboa, vividas cerca de dois meses após o 25 de Abril de 1974, recuperam um quotidiano de clausura, terminantemente oposto à liberdade que o país celebrava.

“Éramos escravas autênticas, sem hora para deitar, mas sempre para levantar. Eu só podia sair aos domingos, às 17h, e tinha de entrar de novo às 19h”.

O fardo de trabalho, à época comum para as empregadas internas que, como Maria, vinham das ex-colónias, aprisionou-lhe os sonhos durante dois anos e meio. 

Maria Patriarca acompanhada do primeiro-ministro de Cabo Verde, Ulisses Correia e Silva (em cima) e do Presidente da República de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa.

Além do dia-a-dia de reclusão, a hoje avó de cinco meninos recorda como tudo à volta a fazia sentir-se estrangeira. “Antes de chegar a Lisboa, o barco esteve na Ilha da Madeira. Aí, havia água a correr no meio das plantas, tal e qual como em Cabo Verde”, diz, sem esquecer a desolação do primeiro contacto com a capital portuguesa. “Nunca pensei que era assim. Foi o pior dia da minha vida”.

“Aprendi a lutar. Se caio hoje, amanhã levanto”

A má impressão agravou-se na continuidade de uma velha prática escravocrata e colonial: a desumanização do negro.

“Há muita coisa que deixou marcas que a gente não consegue esquecer”, aponta, de volta a um domingo de má memória. “Cheguei a casa um pouco depois das 19h. A senhora estava na janela, viu-me, mas não abriu a porta. Deixou-me a dormir na escada”.

O castigo assumiu contornos de tortura porque, de fora do apartamento, Maria ouvia passos, como se, lá dentro, alguém se estivesse a divertir com a violência. “Foi muito sofrimento até chegar aqui, mas aprendi a lutar. Se caio hoje, amanhã levanto”.

O “treino” de 65 anos de vida mede-se não apenas pela resistência às quedas.

“Vá até ao Coqueiro, peça para falar com a Dona Patriarca. É a pessoa certa para ajudar”.

A indicação, recebida entre ruas da Cova da Moura, tanto serve para encaminhar equipas de reportagem em busca de uma história sobre o bairro, como para orientar alguém à procura de orientação profissional.

“Mandam toda a gente para aqui, é verdade. Não sei porquê, não faço a mínima ideia…vai acontecendo…”, relativiza Maria.

“Eu sou assim, se posso ajudar, ajudo…faço, vou…”.

A leitura de libertação

A cada verbo, ouve-se um grito de libertação.

Antes de assentar morada no seu restaurante, a cabo-verdiana teve de se libertar da clausura e opressão que enfrentou à chegada a Portugal. “Para sair daquela casa, tive de fazer malcriação, ser malcriada mesmo. Até me ofereceram Polícia”.

Impassível diante da intimidação, Maria passou a trabalhar para outra família, e, pela primeira vez desde a partida de Cabo Verde, descobriu o significado de folgas e férias.

De direito em conquista, sem nunca desistir dos objectivos, a Dona Patriarca ainda mobilizou energia para aprender a ler e escrever. “Era um desejo que tinha. Toda a minha vida não desejava mais nada: queria saber ler qualquer coisa”.

O sonho da instrução primária cumpriu-se entre a preparação de almoços e jantares no Coqueiro, e a gestão de responsabilidades familiares. “Às vezes fico a pensar na minha vida, e nem eu sei como é que foi. Posso apenas dizer que fui fazendo as coisas”.

Os voos da reforma

A caminhada, que transformou Maria numa mentora para outras mulheres da Cova da Moura, encaminha-se para a reforma. “Tenho o sonho de deixar de trabalhar daqui a uns dois anitos, ter saúde, e ir passear com o meu marido, porque adoro viajar”.

Seja qual for o destino, a cabo-verdiana lembra que tem um passado de razões para manter o optimismo. “Antigamente éramos pretas. Pretas mesmo. Não éramos negras, que é uma palavra bonita. Erámos só pretas”, reforça, de foco apontado para a mudança: “Agora já somos senhoras. Lutámos para sermos chamadas pelo nome”.

 

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