No palco com “Fragmentos” de vivências que unem mulheres negras pela Europa

Depois da passagem pelo Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro, para uma residência artística, a performance “Fragmentos”, da coreógrafa e professora de dança Marisa Paulo, apresenta-se no Solar dos Zagallos, na Sobreda, em ensaio aberto. O momento acontece no próximo sábado, 22, às 15h30, num programa que inclui uma conversa sobre o processo criativo, ainda em construção, e que integra vivências partilhadas por mais de uma dezena de mulheres negras residentes em Portugal, Bélgica, Itália e Espanha. Além dessa recolha biográfica, focada em entender como género e pertença étnico-racial marcam identidades enraizadas em África e construídas na diáspora, a criação envolve pesquisa documental, revelou Marisa Paulo, em conversa com o Afrolink, publicada no final do ano passado. “O objectivo é que os intervenientes se questionem sobre identidade, pertença e herança cultural, através do movimento de matriz africana”, disse a criadora, explicando as singularidades que tornam “Fragmentos” tão plural. Reflexões para recordar, a caminho do ensaio aberto, de entrada livre.

A realização de entrevistas é parte fundamental do processo criativo

Texto de Paula Cardoso

Fotos cedidas pela produção de “Fragmentos”

O que significa ser mulher negra na Europa? Como condensar essa identidade em três adjectivos? Que vivências a acompanham? Com quem as partilhamos? De quem as protegemos?

Quaisquer que sejam as respostas, há um movimento que as traduz à espera de acontecer, através do corpo da coreógrafa e professora de dança Marisa Paulo.

A conversão de testemunhos em gestos coordena-se na performance “Fragmentos”, para conhecer em ensaio aberto no próximo sábado, 22, às 15h30, no Solar dos Zagallos, na Sobreda.

Idealizada por Marisa Paulo, a criação vive dessa recolha biográfica, feita a partir de entrevistas a mulheres negras residentes em Portugal, Bélgica, Itália e Espanha, a que se junta uma componente de pesquisa documental.

“Fui à procura de informação sobre a realidade das mulheres negras, por exemplo no acesso ao emprego, à saúde e à educação”, explica Marisa, acrescentando que para contornar a falta de estatísticas étnico-raciais recorreu ao conhecimento de quem intervém no terreno.

Uma performance em construção

O resultado desse encontro entre histórias e dados ganha expressão em “Fragmentos”, performance que continua em construção, juntando movimento, música e comunicação audiovisual.

“Esta é uma criação que, efectivamente, não tem data de finalização, não tem data para a apresentação do espectáculo. Estou mesmo a trabalhar o processo”, revela Marisa, que, entre Dezembro de 2022 e o início do ano,  e Janeiro, concretizou mais uma etapa da sua produção: a oficina “Da Raiz ao Movimento”.

A proposta desenvolveu-se no Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro, no mesmo espaço onde a autora realizou a residência artística, e teve como objectivo levar os intervenientes a se questionarem “sobre identidade, pertença e herança cultural, através do movimento de matriz africana”.

A par dessa oficina, a construção de “Fragmentos”, projecto apoiado pela Direcção-Geral das Artes, prevê a realização de vários ensaios abertos, como o que está programado para sábado.

A diversidade na igualdade

“A ideia é mostrar o que já tiver sido desenvolvido em termos de performance, e depois promover uma conversa com o público sobre o processo criativo. Acho importante conversarmos sobre o que é visto do palco, o que está a ser tratado, como é que as pessoas entendem o movimento, qual é a leitura que fazem do que estão a ver”, adiantava Marisa, antes da viagem para o Brasil.

“O que pretendo é trazer para palco experiências, vivências, conhecimentos de diferentes mulheres negras. Sabemos que a nossa vida é pautada por momentos semelhantes, mas também existe muita diversidade nas nossas histórias. Isso é algo que tento captar e perceber”.

Nesse exercício de compreensão, a coreógrafa fez questão de incluir países cuja população negra tivesse várias proveniências africanas – e não apenas a lusófona.

Daí resultaram entrevistas não apenas em português, mas também em italiano, espanhol e francês, idiomas que também dão vida ao espectáculo.

“As mulheres que entrevistei vão estar em palco comigo através dos áudios, vídeos e fotos que fomos recolhendo”, nota Marisa, que contou com o apoio de Alesa Herero na produção.

O processo tornou-se tão rico que a criadora de “Fragmentos” já sonha com outras versões da performance. A começar por um documentário.

“Depois da diversidade de testemunhos, do amor, e da dor partilhada nas entrevistas fico a pensar em como seria bom aproveitar o material para além deste primeiro momento”.

Empenhada em não desperdiçar os fragmentos de vida que lhe foram confiados, Marisa sublinha que os testemunhos não foram recolhidos para servir esta ou aquela narrativa.

“Por exemplo, não estava à procura de relatos de dor. Quando perguntei o que representa ser mulher e ser negra, e quando pedi para partilharem uma experiência, não estava a direccionar em nenhum sentido. Queria mesmo perceber.”

Temos de falar mais entre nós

Sem mãos a medir face à pluralidade das respostas, e ao mesmo tempo entusiasmada com a sua força documental, Marisa confessa que ficou com vontade de recolher ainda mais testemunhos.

“Acredito que o processo pode ter ainda mais diversidade. Por exemplo,  não tive a possibilidade de entrevistar mulheres mais velhas. Apenas falei com uma que está na casa dos 50, e sei que o projecto teria a ganhar com este conhecimento”.

Outra via identificada por Marisa para multiplicar as vozes no palco é a realização de workshops com mulheres negras e afrodescendentes. “Gostaria de agarrar no material recolhido e depois incluí-lo na performance. É uma forma de visibilizar mais histórias”. Também é um meio de colocar em prática uma das aprendizagens que guarda deste processo criativo, verbalizadas por uma das mulheres que entrevistou.

“Temos de falar mais entre nós. Temos de falar mais de nós, e para nós”. Comecemos por “Fragmentos”. A cura em movimentos.

Marisa Paulo, na residência artística da performance “Fragmentos”, no Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro

A performance “Fragmentos” está a ser desenvolvida com os seguintes apoios:

República Portuguesa – Cultura | DGARTES – Direção-Geral das Artes

Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro | Secretaria Municipal de Cultura

Associação Cultural e Juvenil Batoto Yetu Portugal